Quando a ética sofre “pane seca”
Ao que tudo indica, a aeronave da LaMia que caiu com a delegação da Chapecoense sofreu de um problema ao mesmo tempo sério e banal: falta de combustível. O piloto abasteceu o avião com a quantidade exata para realizar o trajeto planejado, sem deixar uma margem de segurança para eventualidades como atraso no pouso ou desvio de rota. Jogou com a sorte, contrariando as regras da aviação internacional e o bom senso.
O caso da empresa boliviana de voos charter é representativo de uma tendência de comportamento coletivo referida por Christian Morel em “Erros radicais e decisões absurdas” (ed. Campus): no dia a dia, as empresas “produzem coletivamente, dentro das regras, normas, procedimentos e práticas que as fazem desviar-se progressivamente da máxima segurança possível. De certa forma, decretam o próprio desvio em que irão pouco a pouco se envolver. (...) É fácil imaginar que, através desse processo, a organização vá se distanciando pouco a pouco, dentro das regras, do nível de segurança necessário” (p. 62).
Provavelmente a LaMia voou diversas vezes nessas condições, assumindo o risco de afastar-se da segurança máxima possível. Como não houve incidentes, criou internamente uma das tais regras particulares mencionadas por Morel, diferente da ideal. Incorporou o desvio ao seu modelo mental.
Afastar-se do ideal em nome de um código próprio de normas e critérios não é exclusividade da segurança na aviação comercial. Mecanismo semelhante de funcionamento coletivo acomete as sociedades no que tange à correção de atitudes e comportamentos. As regras existem para evitar desvios da norma, mas a vida prática faz proliferar a “normalização do desvio”, para voltar a uma expressão de Morel. Onde quer que seja, o dia-a-dia forja códigos de conduta nem sempre condizentes com o previsto na lei e nas regras tácitas de convivência. Acaba-se construindo uma regra própria, derivada da original, e que pode tanto ser compartilhada por algumas poucas pessoas quanto por uma sociedade inteira.
A rotina empresarial e a vida política são campos férteis para a criação de regras próprias. Em ambas, situações e conflitos se resolvem conforme o sabor das conveniências e das possibilidades e, no acumular do tempo, acabam por criar uma versão flexibilizada dos ideais de conduta. A regra transformada, ou até transgredida, vira então a nova referência para comportamentos. A homens de negócios e políticos é facultado, parafraseando José Arthur Giannotti, “inaugurar o espaço da invenção”, aproveitando-se das brechas oferecidas pela confrontação entre ideal e possibilidade.
A despeito das leis e das normas, a democracia e o capitalismo reservam instâncias de julgamento sobre o nível de flexibilidade moral de seus atores. Na democracia, ela dá-se sob a forma de eleições – políticos excessivamente lenientes com sua conduta ética podem perfeitamente ser banidos da vida pública, bastando que, para isso, eleitores se convençam da inadequação de seus atos. No capitalismo, essa instância é o mercado. Consumidores têm a prerrogativa de julgar se práticas empresariais danosas (desde que tornadas públicas, obviamente) merecem ser punidas com o boicote a produtos e serviços de determinada companhia, por exemplo.
Urnas e mercado são incapazes de dirimir todas as dúvidas, sequer de promover reabilitações morais verdadeiramente definitivas. Contudo, inegavelmente configuram um teste. A punição da Justiça repara a afronta à lei, mas não controla o espírito nem desfaz o costume. Eleições e mercado, em última análise, refletem a flexibilidade moral de uma sociedade e são o espelho no qual cada cidadão se enxerga.
Por isso, não chega a ser surpreendente que venham proliferando livros, profissionais e cursos de gestão da imagem e de administração de crises. Mais importante que o fato é a versão. No fim das contas, aliás, só prevalecem versões – uma hegemônica, vitoriosa, e outra(s) alternativa(s), derrotada(s). Se todas as querelas morais estão fadadas a se resolver definitivamente sob a forma de votos e consumo, habilidades retóricas e dissimulativas são mais importantes que posturas probas, afinal.
Cláudio Abramo, decano dos jornalistas brasileiros, prescrevia aos colegas “a ética do marceneiro”: não haveria porque serem diferentes as condutas de um e de outro profissional, uma vez que o certo e o errado valem em todas as atividades. Para políticos e homens de negócio, supõe-se, recomendaria o mesmo: seus compromissos são os de quaisquer cidadãos. Instigante e respeitável a síntese de Abramo, mas ao que tudo indica, utópica; ao invés de imposta, a ética é negociada, e mais do que única, se desdobra em várias. A ética molda-se à ambição e à circunstância, de modo que o próprio Abramo talvez tivesse que se resignar ao encontrar hoje colegas de profissão – ou mesmo marceneiros – se valendo dos conselhos de um “consultor de imagem”.
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