Adiós, Pepe

Morre o presidente dos desejos grandes
Mujica foi um homem de desejos grandes, quiçá utópicos, e pagou o preço por eles e pela coerência que exigiam

Se alguém tinha "lugar de fala" para vociferar contra o consumismo era José Pepe Mujica, morto no último dia 13, em Montevidéu. O ex-mandatário uruguaio se notabilizou pelo estilo de vida espartano e pelo desapego incomum, a ponto de, durante sua passagem pelo cargo máximo do país, doar todo o soldo presidencial e continuar morando em sua combalida residência nos arredores da capital, e não em um palácio cercado por guardas e mordomias. Viveu o que pregou, portanto.

Daí que em uma de suas últimas entrevistas estivesse à vontade para se queixar de que "o mercado nos domina e nos rouba a vida". "Por que trocar de carro e refrigerador? Vivemos para comprar", disse ele, não sem antes lançar mão de uma estatística duvidosa: o Uruguai importaria 27 milhões de pares de sapatos para uma população de 3,5 milhões de habitantes. "For what?" ("Pra quê?"), questionava (The New York Times, 23/08/24). "Você é livre quando escapa da lei da necessidade", concluiu, com sabedoria.

Entendo Mujica e também quem não o compreendia em seu desprendimento. Paixões alheias – ou a ausência delas – sempre nos soam estranhas e não raro são julgadas sob certo vezo moralista. Ao velho ex-guerrilheiro certamente parecia tão fútil ou ilusório alguém se entusiasmar com um passeio no shopping, uma roupa nova ou o automóvel mais moderno quanto para seus antagonistas ouvi-lo pregar a revolução, a justiça social ou o que quer que estivesse na sua pauta e na dos tupamaros durante os anos 1960 e 1970.

Havia uma certa verdade nos lamentos de Pepe – e uma contradição que talvez relutasse admitir. O psicanalista Contardo Calligaris (1948-2021) dizia que há dois conjuntos de desejos: os grandes e os pequenos. Os primeiros nos definem, moldam a nossa vida, podem exigir sacrifícios e são insubstituíveis. Os diminutos, ao contrário, são fluidos e sujeitos a troca, e por isso perfeitos para uma sociedade de consumo que vive da permanente novidade. Mujica foi um homem de desejos grandes, quiçá utópicos, e pagou o preço por eles e pela coerência que exigiam: ficou 14 anos preso e não desfrutou dos privilégios materiais de que poderia quando em liberdade.

Porém, o mundo em que viveu desde a redemocratização uruguaia (1985) era e é todo feito de desejos pequenos, as tais "necessidades" que ele dizia se multiplicarem e cobrar em vida – ou seja, tempo e saúde – sua satisfação. E, provavelmente para seu desalento, percebesse que não se inventou caminho melhor para a almejada distribuição de renda do que o animal spirits e a eficiência administrativa. Em entrevista no início de 2024, questionado acerca de uma polêmica vazia do verão oriental (o então presidente Lacalle Pou fora flagrado dirigindo uma motocicleta sem capacete), Mujica rejeitou entrar no coro da política miúda e propôs um debate mais pragmático: o Uruguai precisava crescer 4% ao ano e "acabar com a festa burocrática" das repartições públicas e das estatais para fazer frente às suas demandas de desenvolvimento (El País Uruguai, 09/01/24).

O velho sábio capitulara? Sentia-se refém de um sistema que abominava? Ou reconhecia involuntária e disfarçadamente que as paixões empreendedoras pudessem ser desejos tão grandes quanto os dos revolucionários socialistas, e as únicas, hoje, capazes de promover alguma justiça social exatamente por se disporem a ir ao encontro dos pequenos desejos do consumidor vulgar?

Se resta um consolo à bela biografia de Pepe é de que "as únicas lutas que valem a pena são aquelas que você vai perder (...) até um que um dia alguém como você, que acredita, vença. (...) Você não deve se sentir um mártir. Tem de desfrutar".

Se o jornalista norte-americano Isidor Feinstein Stone (1907-1989) estiver certo, Pepe vai em paz, pois desfrutou.

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Quinta, 15 Mai 2025

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