Tarde demais

Pouco a pouco, começo a perder a noção de como era a vida de outros tempos. Vão se esfumando as lembranças da época em que o telefone tocava no bar e o garçom vinha até você e cochichava: "É ela de novo, doutor. Diz que as visitas já chegaram e que p...
Tarde demais

Pouco a pouco, começo a perder a noção de como era a vida de outros tempos. Vão se esfumando as lembranças da época em que o telefone tocava no bar e o garçom vinha até você e cochichava: "É ela de novo, doutor. Diz que as visitas já chegaram e que precisa servir o jantar. Não me olhe desse jeito, estou só dando o recado". Embora incompreensível para a maioria dos leitores jovens – se é que os tenho –, dá para ter saudades desses anos em que não passava pelas nossas cabeças o monitoramento em tempo real pelo celular. 

O que mais me chama a atenção hoje é a imensa cadeia de pressão a que a tecnologia da informação nos submete. Perdido o indulto que tínhamos quando estávamos no avião – já que agora há wi-fi a bordo –, eis que se impõe um novo modelo de vida, e daí resultará um ser humano alterado pela avalanche de pressões compartilhadas que, querendo ou não, fazemos uns sobre os outros. Pelo bem ou pelo mal, estar on-line deverá impor uma forma de interação entre as pessoas que não viverei para ver. Há, pois, uma mutação genética em curso.

O fenômeno, contudo, é que as gerações que vieram ao mundo sob a égide do numérico –- e que vivem sob carga inaudita de cobranças, digamos, digitais – ficam perplexas, quase paralisadas, quando recebem-nas de viva voz. É como se a inteiração com a voz humana lhes fosse mais do que estranha, soasse quase hostil. À custa de terem crescido sob o primado da pressão pela tela, um mínimo de contundência que emane das cordas vocais – e não de um comando sintetizado – pode desacorçoá-las. 

Percebi isso dia desses num hotel. "Sua galinhada está empelotada, caro amigo. O arroz virou papa. E a muqueca está fria, quase gelada". A dona do restaurante veio ter comigo: "Está indo tudo bem, senhor?" O gerúndio é sintoma claro de oligofrenia. Fui claro: "Estaria melhor se a senhora investisse menos em móveis e um pouco no treinamento da brigada".  A reação dela foi a previsível: "Por que o senhor não nos está mandando um e-mail?" Quase ri. "Para quem, madame? Que serventia teria um e-mail se já estou dando (aderi) a mensagem à receptora?" Ela não soube o que dizer. 

A contundência adulta, a pessoalidade da mensagem direta, faz com que essas gerações me vejam diante de um ser repressor, e não diante de um aliado do desenvolvimento delas, ou de um cliente que, indiretamente, lhes paga o salário. Assim fazendo, tenho certeza de que não se dão conta de que o inimigo real é o "Big Brother" da civilização do numérico a que obedecem cegamente. É claro que ao vivo ficaria patético tentar reagir por emojis, embora muitos tentem. A voz humana lhes lembra o lar onde eles pontificam como problema, aos olhos de pais que tentaram alertá-los para o perigo de lobotomia digital. E de que eles pareciam não se dar conta. 

Agora, repito o título de um filme que me marcou de tão belo: (é) tarde demais para voltar atrás. 

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Terça, 30 Abril 2024

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