Sonho refrigerado
Schiller escreveu a "Ode à Alegria". Dilma Rousseff saudou a mandioca (e o milho). Paulinho da Viola homenageou Mangueira e Portela. E gaúchos e gaúchas de todas as querências estão desde a semana passada prestando tributo a Willis Carrier (1876-1950) e a sua notável invenção, o ar-condicionado.
E pensar que o equipamento foi concebido, no início do século 20, para preservar matérias-primas, e não a delicada saúde humana. A aplicação inicial da refrigeração estava nas gráficas de Nova Iorque, impedidas de funcionar a contento durante os meses de calor e umidade elevada. Logo a novidade se espalhou para indústrias de outros ramos. Percebendo que a satisfação e o desempenho dos operários aumentava com fábricas climatizadas, patrões passaram a instalar o ar-condicionado também nos escritórios onde ocorria o trabalho burocrático, ainda realizado sob as pesadas vestes formais daqueles tempos.
Provado seu valor para a labuta, foi o momento de viabilizar a principal forma de lazer da época, o cinema, até então inviável nos verões. As salas climatizadas tornaram-se chamariz publicitário. O aumento da clientela levou Hollywood a programar filmes para estrear justamente na estação mais quente, antes desprezada.
Não foi a única mudança que provocou. O ar-condicionado permitiu o funcionamento ininterrupto de lojas e escolas e a ocupação do sul dos Estados Unidos, região de altas temperaturas e baixa densidade populacional. Hoje, 90% dos domicílios norte-americanos contam com algum tipo de refrigeração.
Diferentemente do Brasil, segundo maior produtor mundial dos aparelhos, mas onde só um quarto das casas tem condicionador de ar. O que obriga muita gente a buscar nos centros comerciais um alívio. Nisso, os shoppings têm uma vantagem sobre as lojas de rua: além de fresquinhos, não sofrem com a incidência do astro-rei, que faz consumidores mudarem de calçada, preferindo a sombra – e tornando a posição solar um curioso inibidor de vendas.
Depois de décadas na Europa, o escritor norte-americano Henry Miller (1891-1980) voltou ao país natal quando da eclosão da Segunda Guerra. Lá, impressionou-se em como a urbanização e o desenvolvimento tecnológico haviam remodelado as cidades, em nítido contraste com a tradição atemporal das capitais do Velho Mundo. Contrariado, chamou os Estados Unidos de um "pesadelo refrigerado".
O queixume de Miller podia fazer algum sentido 90 anos atrás. Atualmente, não. O último mês de janeiro foi o mais quente da série histórica no planeta, e os primeiros dias de fevereiro têm sido especialmente calorentos no sul do Brasil. Foram-se os tempos da SAPA, a simpática e fictícia Sociedade Amigos de Porto Alegre, entidade que "reunia" os moradores da capital impedidos ou desinteressados em rumar para o litoral entre janeiro e fevereiro, oferecendo-lhes de bandeja uma cidade agradavelmente vazia. Hoje, predomina a hashtag #FornoAlegre; quem pode, foge.
"Pesadelo refrigerado"? Ao contrário: o sonho é climatizado. Pesadelo é a realidade.
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