O filme brasileiro de Cannes no momento

Estou louco para ver "O Agente Secreto", Recife 1977
Quero muito ver o filme do menino Kleber, não tão menino assim. Tenho certeza de que Wagner Moura dará um show

Estou louco para ver esse filme. Torço para que saia de Cannes com uma premiação para que o ciclo virtuoso de "Ainda estou aqui" se perpetue nas telas e na memória nacional. 1977 é um ano que me enche de curiosidade. Aos 19 anos, depois de passar o ano de 1976 na Europa, voltei para o Recife em abril. Tinha que me safar do serviço militar e fazer vestibular. Com o ano passado na Alemanha – foram 16 meses de ausência, na verdade – eu ainda tinha de terminar o segundo grau. Encantado com as cores da cidade, me descobri tropical. A efervescência política batia o auge. Ainda teríamos dois anos de governo Geisel. E depois, mais um mandato do general Figueiredo até meados dos anos 1980. Haja! Mas em 1977...

Em 1977, o Recife era uma fornalha de muitas cores. Estranhei bastante o que encontrei, mas me diverti. Meus pais tinham se mudado de apartamento e eu ganhei um carro que não pedi. Reatei o namoro com a menina mais bonita da cidade, fui terminar o Nancy na Aliança Francesa e fiz teatro – o que tornava as tardes e as noites de sábado o ponto alto da semana. Pernambuco era governado por um camarada chamado Moura Cavalcanti, que trazia à televisão um espetáculo grotesco de insolência, quando falava (o que, eu não sei) de dedo em riste. Tinha mais. Saía do Palácio do Governo num carro grande cercado de batedores, como se todo dia recebesse um chefe de Estado. Na minha casa, todos o odiavam pela petulância. Abril de 1977 marcou minha segunda volta da Europa, na verdade. A ditadura já saíra de mim. Ela estava à minha volta de mil formas, mas, interiormente, ela já não me oprimia como antes. Sabê-la com os dias contados era revigorante. Tinha amigos portugueses, espanhóis e gregos que já respiravam boas aragens há bom tempo. Logo elas atravessariam o Atlântico, eu sabia. E depois, o que era a repressão brasileira comparada ao que eu vira? O que era ela comparada com as cisões civilizacionais de Israel ou com o fosso congelado que separava Berlim?

Em 1977, eu me tornei um típico fazedor de pontes. Levava para os salões da burguesia estabelecida os amigos menos afortunados. E aos seus endereços, os arrogantes enfatuados. Não sei como arranjava para fazer tanto e, ao mesmo tempo, nada. Tomava batidas no Flash Back todo dia; ia à Cultura Inglesa, ali perto; frequentava o Mustang de Boa Viagem. Ia à praia. Era como se minha casa real fosse na Europa e eu tivesse descoberto os trópicos com um olhar estrangeiro. Até por isso, quero muito ver na tela o Recife de 1977. Era o meu, sem ser...

Quando terminava tudo, ainda ia aos cabarés da zona portuária para beber rum e dançar com as meninas nos bares de marinheiros gregos que quebravam pratos. Naquele ano em que fiz 19 anos, fui feliz à minha maneira, mas tive de fazer concessões a ritos de família a que eu me desacostumara. Aos antigos (mais fácil) e aos mais novos. Meus pais continuavam se digladiando por nada e isso transtornava o que tinha tudo para ser bom. O mundo me curara da ojeriza àquelas picuinhas. Por que não se separavam? O resto era mar. Saía da praia, tirava o sal na piscina do Cabanga e o dia começava. O trânsito fluía, a livraria Livro 7 efervescia de gente, tudo era uma só transição – minha, íntima, e do mundo.

Quero muito ver o filme do menino Kleber, não tão menino assim. Tenho certeza de que Wagner Moura dará um show. Só de ver as fotos, já viajei. 1977 durou pouco. No fim do ano, viajei. Fiz o vestibular para Economia, passei uma procuração para minha mãe e voltei para a Europa para mais quatro meses. 1977 no Recife para mim durou pouco mais de 7 meses. E nunca acabou.

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Sexta, 23 Mai 2025

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