Quando elas rateiam a conta
Quando fui trabalhar numa grande indústria químico-têxtil, vez por outra levava nossos clientes do mundo todo em visita a São Paulo para circular pela fábrica. Dava-me prazer botar um capacete e percorrer as linhas de produção. Queria que vissem não somente o gigantismo de nossa escala, mas, sobretudo, os cuidados que tomávamos para que os enormes cones de rayon viscose chegassem ao destino dentro dos melhores padrões internacionais.
Interessante é que na ponta do controle de qualidade, só tínhamos mulheres. Era voz geral que elas, até por temperamento, eram mais afeitas ao cuidado e à imparcialidade. Assim, se achassem que um cone estava mal formado, excluíam-no ou recusavam-lhe a etiqueta de primeira qualidade. Os homens, no entendimento do gerente do setor, tendiam a ser negligentes ou condescendentes com falhas que poderiam minar nossa imagem.
Foi por volta dessa época, contudo, que ouvi de um diretor da fábrica que elas ganhavam em média 30% a menos do que operários de igual nível hierárquico. Segundo nosso RH, isso se devia a uma questão cultural. "Normalmente o salário delas é só para complementar as finanças domésticas. E depois, mulheres não gastam tanto quanto os homens que precisam bancá-las no bar e lhes atender uma parte dos caprichos. Dinheiro de mulher é pé de cobra, ninguém vê".
Confesso minha perplexidade com o que ouvi na época. Numa piscadela de olhos cúmplice, ele disse que evidentemente aquela norma não era oficial nem seria prudente alardeá-la pelos jornais. Mas que ela resultava da experiência, da vida prática que nenhuma faculdade ensinava. Ora, se isso era dito por um dirigente 30 anos mais velho do que eu e com experiência de comando sobre milhares de operários, quem seria eu para contestar?
Os anos passaram e felizmente essas práticas bizarras já pertencem ao passado. Se faltam razões de ordem moral ou de justiça para reconhecer o quanto evoluímos, que aplaudamos o progresso nem que seja em nome do pragmatismo. Afinal, a tal política que me foi sussurrada naqueles tempos se confunde com um desses anacronismos impensáveis no mundo civilizado. Pois bem, nunca mais pensara a respeito até sábado último.
Isso porque saí com uns casais de amigos para prosear e, de soslaio, ver a final da Champions League que rolava na televisão. No intervalo, achamos todos que o jogo estava muito bom e que merecíamos assistir ao segundo tempo em casa, refastelados em nossas poltronas. De mais, a conversa ali já dera o suficiente e ninguém mais tinha o que acrescentar à greve dos caminhoneiros que, na semana seguinte, conheceria o auge.
Foi nesse momento que o garçom trouxe a conta e, imprudentemente, deixou-a circular entre as três mulheres que davam as costas para a televisão, desinteressadas no jogo. Depois de uma ruidosa confabulação em voz alta sobre petiscos e aperitivos – deselegância que homem nenhum faz –, e de uma intenso intercâmbio aritmético em calculadoras de celular, o que também trai o amadorismo, arbitraram a parcela que caberia a cada comensal.
Ora, se nada havia ali que levasse alguém à bancarrota, pois se tratava de uma gordurosa feijoadinha de boteco, a falta de critério de nossa bancada de calculistas foi clamorosa. Pouco importava que reunissem massa cinzenta apta a mandar um homem à lua. O que se evidenciava ali era que não havia lastro de vivência mundana para contemplar desigualdades, assimetrias e dessemelhanças. Enfim, o mínimo de bom senso que a situação pedia.
Foi assim que pensei na velha sabedoria do diretor administrativo jurássico dos anos 1980 e sobre sua estranha teoria quanto a necessidades diferentes e deveres precípuos que oneravam e distinguiam os homens de então. Faltava às nossas moças à mesa o repertório de milhares de horas de boteco que calibra a sensibilidade masculina para além do que sinaliza a aritmética. E foi pensando nessas barbeiragens que vi o goleiro do Liverpool tomar dois "perus".
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