Homem antigo
Nesta quarta pela manhã me dei conta de que sou realmente um cara deslocado no tempo. Tivesse eu que prestar um desses vestibulares para arranjar uma namorada, seria reprovado em nove entre dez dos quesitos básicos. E aqui já nem falo dos subjetivos, das provas classificatórias digamos assim. Falo das eliminatórias, a cujo paredão eu sucumbiria já na primeira rodada.
Digo isso porque acordei mais cedo do que meus anfitriões, liguei o computador para acelerar as coisas (já tendo em vista o feriado do Brasil na sexta-feira) e, para entrar em forma, pensei que seria boa ideia fazer um café. Ocorre que a cafeteira é daquelas em que se coloca um filtro, o pó, água em algum lugar, e depois é só esperar. Com muito cuidado, executei as operações.
Ora, quando meu primo faz café, sei que em dado momento ele começa a borbulhar – o café, não meu primo – e só então ele vai lá se servir. Por que o mesmo não acontecia com o meu? Fui lá, verifiquei a boa execução dos passos da operação e nada. Uma hora depois ele acordou. Então eu disse que a máquina devia estar avariada, mas que eu não era culpado. Simples. Tinha faltado acionar o botãozinho.
E na terça? Cheguei à universidade com a camisa toda amassada. Só no espelho do elevador me dei conta do estrago. Nem o físico roliço ajudou a moldar o tecido no corpo. À noite, a filha de meu primo perguntou: o que foi isso? É que, como não sei passar a ferro, tirei a camisa da máquina de secar e vesti-a do jeito que estava, achando que tapearia os olhos alheios. Foi tentativa vã.
Nessa toada, ainda hoje fico chocado quando as pessoas perguntam se quero um chá. Digo que sim, e então elas apontam a água quente, os saquinhos e dizem: pode se servir. Tenho uma sensação de que caí numa pegadinha e que aquilo é para rir. Não concebo que quem ofereceu, não o faça e o traga até mim. Parece coisa de americano. Mas na verdade, é. Estou nos Estados Unidos.
Mas todo estrago vem de longe. Quando fui para a França aos 15 anos, o orçamento não era essas coisas. Mesmo assim, lembro de mamãe dizendo no aeroporto: "Trate de garantir que pelo menos uma vez ao dia você seja servido decentemente. Não fique comendo sanduíches de pé ao lado do balcão. Um garçom bem educado dá até mais sabor à comida". Hoje rio dessa preleção aristocrática.
Quando morei na Inglaterra, Mrs. Hirst gostava de ser ajudada na hora de lavar a louça do jantar. O marido dela dava uma mão nos pratos, uma senegalesa embalava o que restara para deixar na geladeira e um estudante belga recolhia talheres, migalhas e batia a toalha. Normalmente, sob pretexto de que atrapalharia mais do que ajudaria, eu pedia um chá na sala, tirava o gato da poltrona e ia ler o Times.
Tempo desses deixei cair um saco de semolina de cuscuz na cozinha de amigos. Resolvi eu mesmo varrer o chão para reparar o dano. Pois bem, a vassoura na minha mão não saía do lugar. Eu não conseguia achar uma posição. Segurava o cabo e a empurrava para baixo. Ou então tentava dar um jeito de lado e parecia que estava remando numa regata.
Nunca, jamais em minha vida, teria um animal para sair recolhendo com um saquinho plástico vocês bem sabem o quê. Nunca lavei um carro, aguei uma planta, alimentei um periquito e, sendo um gourmet prendado, seria incapaz de botar o feijão para cozinhar. Ainda hoje é um mistério como aparece aquele caldo preto se tudo começa com água e os grãos na panela.
Teve uma época que aprendi a executar caipirinhas que fizeram grande sucesso. Mas eu terminava dando um gole em cada uma para ver se tinha ficado boa, além da minha cota, e antes da fila chegar ao fim, eu já estava empolgado demais, conversava com cada um demoradamente, e um amigo me disse que eu estava definitivamente do lado errado do balcão.
De uns anos para cá aprendi a lavar os óculos porque antes costumava pedir a quem estivesse passando que fizesse isso por mim. Da mesma forma como não posso ver alguém com menos de 25 anos e já lhe dou o celular para destravar alguma geringonça que desconheça como fotos que não foram postadas no Instagram, mensagens idiotas do WhatsApp ou acionar o Uber.
Ainda este ano me pediram para colocar umas espigas de milho na fogueira na festa de São João. Empolgado e me sentindo útil, fui lá e coloquei-as num lugar que me pareceu estratégico. Um minuto mais tarde, a labareda carbonizou-as e nem o caseiro deu jeito: "Essas aí, nunca mais doutor. O senhor esqueceu que para comer, a gente precisava conseguir tirar". Era mais fácil evacuar Fukushima do que recuperar o milho.
Uma vez no kibutz me confiaram a tarefa de limpar a piscina. Tinha um escovão enorme que eu pilotava de fora e uns comandos numa casa de máquinas para reciclar a água, ou assim entendi. Acordaram-me furibundos. Um velhote foi dar suas braçadas matinais e quase morreu. A piscina estava vazia. O homem sobrevivera a Treblinka, mas eu quase o eliminei.
Nessa mesma época, servi no refeitório o então Primeiro-Ministro Pierre Trudeau, pai do atual. De olho no decote da mulher dele, deixei cair uma faca melada de manteiga na nuca do homem. O menino do Mossad ou sei lá mais de onde, deu um pulo e levou a mão à cintura. Foi por pouco que não fiquei ai mesmo, com uma azeitona no meio da testa, sem direito a um kadish na Galileia.
Na Flórida, na casa de meu então concunhado, chegou um monte de gente para o happy hour. Figuras notórias da sociedade paulistana. Ficou a meu cargo abrir os vinhos. Tendo eu próprio tomado uns a mais, perdi o saca-rolha. Resolvi usar o do canivete de estimação do anfitrião. Perdi-me nos comandos e quebrei o de abrir lata. Ele levou-o para a Suíça para uma cirurgia, o técnico não sabia por onde começar.
Por outro lado, sou ótimo em fazer avaliações. Sei num átimo se uma mesa está bem posta, se o peixe está no ponto, se faltou ou sobrou sal, se a dona de casa tem bom gosto, se o vinho vai bem com aquela carne, se um determinado lar é feliz, se o garçom tem futuro na profissão, se colarinhos e punhos estão bem passados e até adivinho os tipos de lingerie antes de vê-la.
Não, não dá certo me meter a fazer coisas estranhas a meu mundo. Não sei como é que vai ser daqui para a frente. Hoje mesmo, quarta-feira, depois de várias noites num colchão mole, acordei com uma dor lá embaixo nas costas, na altura dos rins. Em idos tempos, era só chamar e sempre aparecia alguém na porta com uma palavra reconfortante e um chá. Hoje, só me chega o barulhinho de um cortador de grama lá fora.
O tempora, o mores (“Ó tempos, Ó costumes”, exclamação de Cícero, contra a depravação de seus contemporâneos).
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