A juventude dos outros
Assisti a dois bons jogos de futebol por esses dias e me fascina o empenho com que os atletas se dedicam à Champions League, para muitos um evento até mais importante do que a Copa do Mundo. Por alguns minutos, contudo, percebi que me abstraía por completo do mérito técnico e tático da defesa compacta da Juventus ou do oportunismo virtuoso de Cristiano Ronaldo. Entre uma jogada magistral e outra, eu me fixava no exuberante preparo físico dos jogadores. Mesmo tendo que encarar uma prorrogação, como foi o caso da partida épica entre o Real Madrid e o Bayern de Munique, ambos os plantéis davam um show de fôlego. Nessas horas é inevitável pensar que um dia eu também fui assim. Certamente que não com tamanho vigor ou talento, mas pouco me importavam as quedas, as escoriações e o lusco-fusco dos campos de várzea. Importante era ter o olho na bola e fazer de tudo para esticar os minutos até onde pudesse, tamanha a alegria que propiciava o esporte. É claro que dentro da perspectiva relativa dos anos, isso foi há pouco tempo.
De onde vem essa reflexão tão extemporânea em plena luminosidade do litoral sul de Pernambuco? Certamente porque estou sofrendo com uma terrível tendinite no pé direito. Sentindo enorme dor para botar o pé no chão, fico relegado a certa inutilidade, esparramado na espreguiçadeira sem poder sequer caminhar até a copa e me servir de uma frutinha. E justo nesses dias que queria me dedicar a hábitos saudáveis. Em quaisquer cenários, integra a meia-idade nos darmos conta de que somos feitos de material perecível e que se algum dia alimentamos o mito pueril da indestrutibilidade física, é porque a juventude tem o condão de nos anestesiar quanto às fronteiras que nos imporá a realidade mais adiante. É por isso que a chamamos de anos dourados, época embalada pela irresponsabilidade romântica de que podemos fumar 30 cigarros ao dia impunemente durante duas décadas, entre outros excessos, e nada de ruim decorrerá daí. Some-se a isso as demais prioridades que vão aparecendo e uma ojeriza sem adjetivos a médicos, e eis uma situação propícia a olhar os jogadores com um laivo de inveja e culpa.
Sentimento similar me assola hoje quando dou uma espiada nas telenovelas. Lembro bem a gozação que fazíamos de meu pai quando ele babava diante dos beijos e abraços que os atores trocavam para milhões. Nessa hora, comentava conosco como éramos privilegiados de viver esses tempos. Pois para ele já fora uma enorme proeza ver os joelhos de uma certa professora que tivera quando menino, nos anos 1930. Nessa toada, ele nos inquiria tenazmente sobre como iam nossos namoros e recomendava a mim e meu irmão que só não sucumbíssemos à asneira da fidelidade num mar tão ofertado. Uma paixão, sim, era bem-vinda porque dava um tempero especial à vida. Mas daí a ignorar as outras meninas era demais. "Não cometam o mesmo erro que cometi de ser homem de uma mulher só", dizia. O que foi uma verdade apenas parcial, se é que ela pode ser relativizada. Mas assim era a pedagogia do Nordeste daqueles anos, para grande indignação de minha mãe. O divertido mesmo era vê-lo entusiasmado com os beijos de Regina Duarte e Francisco Cuoco quando para nós aquilo já era cena quase corriqueira. Pois bem, hoje eu o entendo perfeitamente.
"Se juventude soubesse, se velhice pudesse" – eis o velho adágio francês que volta e meia me faz matutar sobre a passagem do tempo e sobre a dieta desbalanceada de prazeres e deveres que fui me dando ao longo da vida. Olhando o pé dolorido e ouvindo os latidos estridentes do cachorro irritadiço, penso no quanto seria bom passar uma boa camada de protetor solar no rosto e nos braços, e percorrer essa praia até a outra extremidade como tantas vezes fiz nesses últimos 40 anos. Mas hoje prefiro saltitar num pé só até o balcão da varanda e fazer uma caipiroska de caju, folhear os jornais e dizer para mim mesmo que amanhã estarei melhor e que o dia estará mais propício para caminhadas. Enquanto isso, que tal umas manjubas fritas? Envelhecer é, sim, um tremendo exercício de autoengano. Uma negociação que se estabelece consigo próprio que obedece a um script parecido com o pactuado entre a empreiteira e o governo. O lado hedonista aceita os favores do provocador que mora dentro de cada um de nós e faz de conta que essa é uma moeda de troca como outra qualquer, normal e indolor. O erário lesado é em última instância a saúde e uma hora a auditoria vai detectar o rombo. Mas, por enquanto, só tenho mesmo uma tendinite no pé direito. Meno male!
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