Vaidade: um estranho combustível

Que baixemos a bola, que vivamos a vida e que façamos da humildade um lema
Poucas perguntas podem soar mais desconcertantes quanto a que fazem as crianças desses tempos: como pode um bichinho que morre com água quente e sabão, resistir tenazmente aos bilhões que são jogados em pesquisa e desenvolvimento?

De Paris (França)

Pouco a pouco, talvez tardiamente, começo a discernir uma linha clara entre a vaidade justa, por assim dizer, e a vaidade oca e perfunctória. Na primeira família, está o orgulho do arquiteto em mostrar a casa que projetou. Ou a alegria contagiante do avô com as artes do neto, que o projetam muito adiante de seu horizonte de finitude, certo de que seu legado estará em boas mãos. Gosto da vaidade do apicultor que nos faz degustar seu mel e que conta sobre os anos que levou para que ele chegasse a um padrão de excelência tal que podemos até ter igual, jamais melhor do que o dele. É isso que move o mundo.

Por outro lado, fico embasbacado - desculpem a palavra, mas não me ocorre uma melhor - em ver pessoas que mesmo tendo conhecido o sucesso muito cedo na vida, não perdem sequer uma ocasião para granjear e exigir manifestações de reiterada admiração de seu séquito. Seja no âmbito das famílias, dos pares, e até das redes sociais que integram. Se isso sempre me apareceu no mínimo ridículo, e invariavelmente risível, parece que os tempos de Covid-19 tornaram essa percepção mais aguda. A visão de valas escancaradas devorando cadáveres lado a lado deveria acionar alguns alertas nos Narcisos do mundo.

Das vaidades mal focadas, aliás, não sei apontar qual a mais patética. Digamos que ganha primazia aquela do Instagram em que as pessoas simulam acrobacias no ar e/ou exibem o rego de seus decotes para glória de seus seguidores. Enquanto não espoucarem mil vezes as palavras "linda", "gostosa", a pessoa não se dá por satisfeita. Na sequência, corre para postar a próxima foto para preencher o vazio que não consegue se explicar. No Twitter, a capacidade de "viralizar" vem da melhor frase de efeito que se lance como isca à patuleia. No Facebook, o sujeito vai se esparramar em juízos auto-congratulatórios sobre sua integridade.

Mas a vaidade mais complexa deve ser mesmo aquela ligada à propagação dos feitos intelectuais, às façanhas do pioneirismo em ter visto as tendências à luz de um saber notório, notável e clarividente. Ora, todo dia os fatos estão a provar que todo o saber do mundo é insuficiente para a resolução até das coisas mais básicas, mesmo que fundamentais à nossa sobrevivência. Nesse contexto, poucas perguntas podem soar mais desconcertantes quanto a que fazem as crianças desses tempos: como pode um bichinho que morre com água quente e sabão, resistir tenazmente aos bilhões que são jogados em pesquisa e desenvolvimento?

Que baixemos a bola, que vivamos a vida e que façamos da humildade um lema. Não dessa humildade nuançada que virou eufemismo para pobreza material. Falo da humildade verdadeira, daquela que aponta para a pequenez e a insignificância do que somos - até que entendamos que só temos a chance de ser sublimes como espécie. E não como solistas alienados de um mundo em destruição. 

Veja mais notícias sobre ComportamentoCoronavírus.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Terça, 16 Abril 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br/