Sobre falar com mulheres

No rescaldo das entrevistas que deu Carlos Ghosn sobre sua evasão do sistema judicial japonês, uma pegadinha intercultural pode ter passado despercebida para a maioria das pessoas. Ou, quando muito, soou como apenas mais uma componente surreal das ta...
Sobre falar com mulheres

No rescaldo das entrevistas que deu Carlos Ghosn sobre sua evasão do sistema judicial japonês, uma pegadinha intercultural pode ter passado despercebida para a maioria das pessoas. Ou, quando muito, soou como apenas mais uma componente surreal das tantas que permeiam o caso. Refiro-me à exigência que fez o juiz – que lá é subalterno da Procuradoria - para que Ghosn escrevesse por que razões ele queria ver a mulher, Carole Ghosn, de quem estava afastado por determinação legal. Só depois de examinar a lista do marido, sua excelência poderia julgar sobre a procedência do pleito. Se atendido, a conversa seria presenciada por um oficial de justiça designado.

Para quem acha isso bizarro, senão absurdo, convém dizer em favor do juiz que é comum no Japão que homens que passaram a vida tratando de negócios com outros homens, vão fazer um curso de como conversar com mulheres, especialmente às vésperas da aposentadoria. Ora, tendo passado décadas saindo de casa cedo e voltado tarde, sem conversar com a esposa nada que fosse além das trivialidades domésticas, como fazer se agora passariam boa parte dos dias juntos, talvez por muitos anos, levando-se em conta a longevidade nipônica? Escravos do planejamento, ruins de improviso e ciosos do preparo formal, muitos japoneses tentam superar este desafio. 

Para a grande maioria deles, conversar com mulheres encerra extrema sensaboria. Isso porque o mundo corporativo lhe proveu de todos os níveis temáticos de que precisavam, até dos mais íntimos quando entre homens da mesma empresa, da mesma faculdade, do mesmo ciclo de interesses. Dentro da conformação de valores vigentes, mulheres – e esposas em especial – pertencem a outra dimensão. Se esta não chega a ser conflituosa, está longe de ser harmônica. Para eles, o diálogo sustentado com uma mulher não pode se dar fora de padrões hierárquicos de seriedade (a deles) sobre a frivolidade (a delas). Quem acha que o Ocidente é machista, não viu nada. 

É claro que a alegação do juiz foi apenas uma forma de coerção imposta pela Procuradoria. Mas no fundo, revelou um traço intercultural, como quase sempre acontece em situações internacionais. Quanto ao aprendizado no curso, soube por um amigo que o frequentou nos anos 1990 que consistia em diversificar os interesses, aprender a ouvir, fingir prestar atenção ao que elas estavam dizendo (especialmente quando fosse desinteressante) e surpreendê-la com um lado que elas desconhecessem até então. Isso não impediu, naturalmente, que muitos fossem expulsos de casa na aposentadoria. Se passara a vida bem sem o marido, o que fazer agora com ele? 

Está, pois, explicada mais uma canhestra exigência judicial do País do Sol Nascente. 

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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