O mestre Le Bon

Comprei certa feita um livrinho intitulado "A psicologia das multidões", de autoria de Gustave Le Bon. Não sei quem o recomendou, mas recordo que era uma pessoa que sabia das coisas. Vendo as manifestações (foto) que varrem a França há semanas, e sen...
O mestre Le Bon

Comprei certa feita um livrinho intitulado "A psicologia das multidões", de autoria de Gustave Le Bon. Não sei quem o recomendou, mas recordo que era uma pessoa que sabia das coisas. Vendo as manifestações (foto) que varrem a França há semanas, e sentindo à distância a emoção epidérmica que se esconde por trás de cada olhar, é inevitável recorrer ao mestre para entender os fascinantes (e funestos) mecanismos que regem o público diretamente concernido, no caso os cidadãos da França. Refiro-me essencialmente a eles por entender que seja compreensível a euforia de franco-atiradores estrangeiros, que, em muitos casos, à mera visão de piquetes e de barricadas de verdade, reatam, em idade provecta, com emoções ligadas a amores de juventude que nasceram à sombra das baionetas polidas. Dito de outra forma, é como entrar num filme, daí a adrenalina da experiência.  

Mas vamos a ele. Diz Le Bon: "Perdida no meio da engrenagem extremamente complexa das civilizações modernas, vendo apenas os efeitos cujas causas ignora, a multidão sente-se tentada a atribuir a vontades particulares os acontecimentos que resultam unicamente das leis gerais que regem o encadeamento das coisas." Pode haver verdade mais gritante? Escolha, por exemplo, uma das fotos das manifestações. Na estação de trem, centenas de pessoas se espremem contritas. Dê um zoom nos indivíduos e projete o que seria uma conversa de café com um deles separadamente. Tenho certeza de que, na imensa maioria dos casos, se depreenderia uma convicção pálida e apenas intuitiva de que uma imensa greve, desencadeada em datas passíveis de traumatizar, é o que resta fazer. Está, pois, instaurada uma dinâmica coletiva que espezinha o norte individual – esmigalhando-o e refratando-o. 

Nesse contexto, Le Bon não se faz de rogado: "Muitas pessoas são dotadas de razão, muito poucas de bom senso." Ao que encadeia: "É bastante fácil fazer surgir sentimentos na alma das multidões, mas é difícil refreá-los. Desenvolvendo-se, convertem-se em forças que não é possível dominar." Não é por outra razão que as confusões de estádio de futebol obedecem a uma dinâmica demoníaca. Quem já frequentou os campos brasileiros nos anos 1990, teve oportunidade de ver o alastramento do fenômeno em escala apavorante. Pouco importava que os indivíduos apresentassem a mesma fragilidade de argumentos do francês que se aposentou aos 45 anos, que acha que o dinheiro brota à noite das castanheiras e plátanos dos bulevares. O certo é que naquela hora todos eram Palmeiras ou São Paulo, e isso lhes dava licença para matar. Cá entre nós, férias antecipadas de Natal não fazem mal algum.   

Uma vez encetado, há de ir até um fim que convenha ao oportunismo dos organizadores. "O prestígio que paralisa inteiramente as faculdades críticas do povo e enche-o de admiração e respeito, precisa do sucesso e se perde em caso de fracasso." Daí que a escalada é inevitável até que, em lágrimas, desconhecidos que se estranhariam num café de Stalingrad, se abracem na Bastilha. Sobre o que diria o mestre. "A história não é mais do que a narração dos esforços empregados pelo homem para edificar um ideal e destruí-lo em seguida, quando, tendo-o atingido, descobre a sua fragilidade." Mas o que importa isso? Para quem levou bordoadas da repressão latina em passeatas da Avenida Conde da Boa Vista, no Recife, aos 16 anos, é doce confraternizar na République aos 61, sob o céu plúmbeo do inverno parisiense. E, por um momento, pensar que está entre irmãos. N´est-ce pas? 

Ah, a idade. "Se juventude soubesse, se velhice pudesse...", quem será que disse isso? Isso posto, não há nada de tão pouco poético quanto um homem vivido. Felizes os tempos em que afrontar a aritmética era um exercício impune. Em tempo: para franceses e pernambucanos, o Estado tudo pode. Basta ter vontade política

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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