Carta sincera às mães

Senhoras mães, Como vocês têm coração grande, vou me permitir começar essa conversa com um grande desabafo, pois sei que não vão me querer mal: o que mais me espanta em vocês, é a incrível dificuldade em dizer não e, certas horas, a incapacidade de d...
Carta sincera às mães

Senhoras mães,

Como vocês têm coração grande, vou me permitir começar essa conversa com um grande desabafo, pois sei que não vão me querer mal: o que mais me espanta em vocês, é a incrível dificuldade em dizer não e, certas horas, a incapacidade de dar uma moldura adequada aos fatos que atormentam os que lhes são próximos. Vamos a um exemplo. Dia desses eu estava no mercado e vi uma senhora examinar a gôndola de biscoitos com o filho. O menino insistia em levar uma determinada marca e esta estava nitidamente além das possibilidades orçamentárias do dia. Então a criança estrebuchou, gritou, se descabelou e chorou aquele choro seco, sem lágrimas, forjado sob medida para a ocasião. Sem saber o que fazer, ela tentou devolver o produto à prateleira, mas isso só agravou o escândalo e percebi o quanto o episódio a constrangia. Num arroubo solidário – não ao menino, mas a ela –, peguei dois pacotes, levei ao caixa livre, paguei-os e lhe presenteei: "Faço isso pela senhora, minha comadre, não por ele, viu? Mas se posso lhe pedir um favor, veja se dá limites a seu filho porque um dia ele vai bater na senhora se não lhe atender os caprichos. Daí para pior". E dei as costas para não constrangê-la a me dar explicações. 

Vejam bem, nunca fui mãe, jamais serei e não teria vocação mínima para tal. Mas acompanhei de perto como as mães criavam seus filhos. Afinal, convivi com muitas delas em suas casas com crianças de todas as idades entre seis e 30 anos. Sei, ademais, que muitas delas davam limites mais do que os pais sabiam fazê-lo, e que lhes atribuir um coração de manteiga é clichê indesculpável a essa altura da história. Mas a recorrência de uma atitude em geral complacente ainda me espanta. Pois sendo algumas delas muitas vezes grandes profissionais, dessas que enquadram meio mundo à base da competência e da autoridade que inspiram, eis que são incapazes de ir além da atordoada senhora do supermercado. E de fazer o que me parece óbvio na circunstância. Ou seja, encarar o diabinho nos olhos e dizer: "Escuta aqui uma coisa, rapaz: eu te dou uma última chance de levar um pacote de biscoito. Mas a marca vai ser a que eu sugerir, não a que você quer. É pegar ou largar, entendeu? E se chorar, se ousar chorar, saímos daqui nesse instante de mãos abanando, está entendido?" Não consigo ver onde mora a dificuldade de colocar fatos tão simples nesses termos. Especialmente porque eles podem trazer dividendos à vida. 

Outra coisa que não entra em minha cabeça é que certas mães aticem os filhos contra a figura paterna depois de uma separação conjugal. Entendo até que possam ter ficado magoadas com o episódio ou que tenham se sentido diminuídas em algum momento. Mas açular a ira dos filhos contra o pai me parece a mais suprema das burrices. Nunca vi uma atitude dessas dar bons resultados. É claro que em certos casos essa conduta pode decorrer de uma tentação heroica, que é a de mostrar à sociedade que não precisou de ninguém para criar o (s) filho (s). Ou seja, sacrifica-se a criança ao altar da egolatria. Outras vezes, o reforço à tal alienação parental advém de um casamento. O novo marido, munido de todas as intenções edulcoradas dos começos, afirma que criará o filho da união anterior como se fosse seu, bravata que arrancará lágrimas dos presentes e causará o impacto esperado: "Que diferença do outro, hein", vão dizer. "Agora sim, ela acertou em cheio", dirá uma tia velha. Pois bem, quando chegarem os filhos da nova união, aquele rebento pioneiro ficará isolado, e poderá (repito, poderá) ser posto de banda como um móvel velho. Como um ser que se tornou ilegítimo, quase indesejável. Eis uma tragédia configurada com a intransferível assinatura materna. 

Por que uma tragédia? Porque a incúria dessa mãe dinamitou durante décadas o cimento afetivo de uma relação que não teve sequer a opção de desabrochar e de se construir. Por muito que tenha ouvido de que essa estratégia de ganhar paz de curto prazo (diante do novo marido) ou aplausos insinceros (das torcedoras e claques afins) é pouco inteligente, o estrago terá sido irremediável. Mesmo porque foi com a mãe que a criança em questão ficou. E como diz uma arguta mãe que conheço bem, que foi dissuadida a tempo pela terapeuta de adotar uma conduta isolacionista e heroica: "Se uma mãe quiser destruir a imagem do pai, ela o faz com um pé nas costas. Não precisa nem dizer muita coisa. Basta assumir uma postura não-verbal hostil à mera menção do nome do pai, dia após dia, e não haverá boa lembrança que possa resistir ao massacre". Sendo o pai de natureza mais contida, tanto pode se acomodar à situação quanto pode torcer para que a idade amadureça o juízo das partes. E que aconteça uma aproximação numa inverossímil janela de oportunidade. Muitos deles tampouco querem se engalfinhar num cabo de guerra desigual e patético. O que acontecerá mais tarde? A criança crescerá desorbitada e sem uma referência paterna. E a mãe não terá como explicar o ocorrido.             

Por fim, e aqui falo por mim, dou uma recomendação que entesouro como um dos bens preciosos que recebi na vida: estudem com seus filhos e contem-lhes histórias. Pode ser história de família, pode ser até uma releitura pessoal de algum episódio marcante. Digo isso porque quando viajo mundo afora, não é raro que a narrativa do observado ecoe na minha mente com a voz de minha mãe. Acidentes geográficos, tabuada ou soletrar palavras são alguns desses eventos que filho algum esquecerá. Muito antes de grandes pesquisadores de Harvard atestarem que o fator mãe fora fundamental e decisivo para que pequenos finlandeses e coreanos lograssem boas colocações em todos os exames, eu já intuía que nada se comparava à voz materna na revisão das fastidiosas lições de casa. "O que foi que Cabral avistou da caravela quando viu o Brasil, mamãe?". Então ela sorria e começava a falar de índios sorridentes, papagaios coloridos e uma vegetação luxuriante. É a voz dela que ouço quando estou no sul da Bahia, sobrevoando a cordilheira do Himalaia ou cruzando o arquipélago nipônico. "Como se chamam as quatro principais ilhas que formam o Japão?" e ela mesma respondia, escandindo as sílabas: "Hokkaido, Shikoku, Kyushu e Honshu". E ríamos daquela sonoridade divertida.   

Resumo, portanto, meus pequenos achados do dia: ao dizer “não”, contextualizem para evitar de botar os filhos a perder, tornando-os vulneráveis às frustrações da vida. Jamais difamem os pais, criando barreiras que possam se revelar intransponíveis quando a vida revelar que o distanciamento emocional se tornou abissal, e que já não sentem qualquer falta um do outro. E comprometam-se com os aspectos mais pedestres da educação de seus filhos. Muito teria a falar sobre as culpas que acometeram de cheio as mulheres de minha geração, algumas delas irremediavelmente fadadas a uma vida não-profissional que, por circunstâncias várias, precisou ser revista. Mas não é minha intenção enumerar regras e tampouco esgotar aqui um tema de tamanha complexidade. Afinal, o fim de semana está mais propício para congratular as mães que vejo todo dia no ônibus e que, apesar do sufoco do trajeto, acham tempo para fazer brincadeiras com os filhos de colo. É a elas que dedico essas reflexões neste maio de 2018. Quanto à minha mãe, às vésperas de completar seus 86 anos, só tenho a reiterar minha admiração pelo denodado amor à vida, pelo bom humor e por tudo o que fez pela família como um todo. Para ela e todas (quase), um beijo.       

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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