Aniversário

Normalmente não comemoro meu aniversário. Mas alguns dias já são por si sós uma celebração. Nesta quarta, dia 29, quando ingresso nos 59 anos de uma vida intensa – estou dando subsídios aos numerólogos que me leem –, me sinto bem. Talvez por ter pass...
Aniversário

Normalmente não comemoro meu aniversário. Mas alguns dias já são por si sós uma celebração. Nesta quarta, dia 29, quando ingresso nos 59 anos de uma vida intensa – estou dando subsídios aos numerólogos que me leem –, me sinto bem. Talvez por ter passado boa parte da última estação na Europa em missões de trabalho e de idílio intelectual que foram se encavalando, a chegada da primavera está sendo especialmente bela. A exemplo de milhões de pessoas que vivem nesse continente privilegiado, estou atento ao canto dos pássaros que começa cedo e termina com a última luz do sol, quase às 9 da noite. Nas praças públicas, as pessoas param para ver a floração das cerejeiras e nunca vi tanta gente sorrindo nos cafés quanto ontem. Quando pedi uma infusão de tília no café Bâle, levei uma reprimenda: "Não, Monsieur, até setembro não serviremos mais bebidas quentes. Eis o cardápio de cervejas, vinhos e coquetéis". Quando tento ser conservador, tudo conspira contra. Fui de cerveja. 

Em meio a essa discreta festa que culminará mais adiante com um verão escaldante de que quero estar bem longe, deixo de lado o noticiário de todo dia para olhar as pessoas e prestar atenção aos pequenos detalhes que fazem a vida grande. Mas é impossível, mesmo assim, desligar de alguns tópicos. A leitura rápida dos jornais mostra que alguns fatos se repetem, obedecendo a um estranho padrão de semelhança, independentemente da moldura cultural diversa. Vejo, por exemplo, o caso de Erdogan, na Turquia. Ao tentar dar uma cartada política que desvirtua uma democracia agonizante, ele nada mais quer do que escapar da cadeia. Sabendo que seu núcleo duro familiar está em maus lençóis, ele apela para o tudo ou nada de um referendo viciado, só para salvar a própria pele. Tudo em nome de uma islamização forçada e o consequente enfraquecimento das instituições. Engraçado é ele achar que ninguém percebe a manobra. Mas o que tem isso a ver com meu aniversário? Muito, talvez. 

Lembro que 40 anos atrás, quando era um jovem cheio de energia e já singrava o mundo, estava em Istambul por volta dessa época do ano. Sabendo se tratar de uma sociedade de perfil mais conservador nos costumes, mesmo porque vivi com muitos turcos nos tempos em que morei na Alemanha, deles ouvi mais de uma vez enquanto estava às margens do Bósforo: "Relaxe, você não está na Arábia Saudita". Ou seja, o que estamos vendo agora representa um retrocesso lamentável num país vital para o equilíbrio de forças em vários palcos geopolíticos: os Bálcãs, o Mediterrâneo Oriental, o Cáucaso, o Oriente Médio e a Ásia Central. O que vale dizer que lá também temos mais uma proposta obscurantista em curso. Erdogan não hesita em recorrer à memória ancestral do Império Otomano para fazer com que se vote com o fígado e não com o cérebro. Mas tento esquecer essas querelas e pensar em outras latitudes, especialmente mais a oeste. E então evoco meu aniversário dos 30 anos, em 1988, o mais feliz dos anos. 

Vejo, então, que estava na Inglaterra e acompanhava a sacudida vigorosa que Thatcher dava nos sindicatos, o que reconfigurou a paisagem econômica britânica. Hoje, quando completo 59 anos, constato com desolação que Londres, por muitos tida como a verdadeira capital do mundo, se prepara para enfrentar a virtual deserção de seus agentes econômicos em favor de alternativas combinadas: Bruxelas, Dublin, Paris, Luxemburgo, Frankfurt e até Madri. Mais doloroso do que isso é saber que esse retrocesso pôs fim a um momento glorioso que coroou os esforços de muitos durante meu próprio tempo de vida. Por conta de um deslize lamentável, agora temos o Brexit e consequências desagradáveis no próprio Arquipélago. A Escócia quer tomar caminho próprio e evita malbaratar os ganhos conseguidos e as Irlandas terão de voltar a ter fronteiras físicas, fator de tensão. Eis outra página que eu dava por virada em minha vida e que pode assinalar um retrocesso contagiante. E já nem quero falar dos Estados Unidos ou da Rússia. Afinal, é meu aniversário. 

Importa, portanto, relativizar a política, a economia e até a História. Convém pensar sim que o mundo seguirá seu curso quando não estivermos mais aqui e nada como o acúmulo dos anos para dar senso de proporção à nossa enorme insignificância. Mesmo homens que deram o melhor de si para transformar a vida de milhões, podem num momento distópico estar a se revolver na tumba com a dilapidação da herança que nos legaram. Falo de De Gaulle, já que escrevo da França, e também de Adenauer, que veio ao mundo do outro lado do Reno. Torço hoje para que a paz de alguma forma não seja sacudida como foi brutalmente no século passado. E que esses jovens barulhentos sentados à minha volta cresçam de acordo com os valores que embalaram a geração de seus pais que conheci bem. Torço, sobretudo, para que possam envelhecer e que não tenham suas vidas ceifadas prematuramente. Mais do que nunca, acredito que enquanto há vida, há alguma esperança. E que nada é tão belo quanto enfrentá-la com desassombro e combatividade. 

É o que tentarei fazer nos próximos anos, se continuar a merecer vivê-los. Agora vou passear e esquecer tudo isso por hoje.  É o que manda a sabedoria claudicante da idade.

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Sexta, 13 Dezembro 2024

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