A psiquiatra do convênio
Como costumamos fazer nessa época, eu e um velho amigo saímos para jantar e botar o papo em dia. Praticamente não nos vemos durante o ano, mas o período de meados de dezembro é sagrado para o balanço geral. Dizer que as coisas vão bem para ele, seria uma afronta à realidade. Com dissabores em vários planos da vida familiar, o mau momento invadiu as searas do trabalho e das finanças. "Se eu pudesse me dar a esse luxo, diria que atravesso uma crise de identidade. Isso é bem típico da adolescência da velhice." Cunhar expressões engenhosas sempre foi seu ponto forte. "Mas tenho novidades. Uma vez por semana, estou indo a uma terapeuta. É a terapeuta do convênio, ou seja, já está incluída no pacote e devo admitir que parece funcionar melhor do que todas as terapias que já fiz até hoje."
Eis um ponto que me deixou curioso. Especialmente vindo dele, um cara que há 30 anos me discorria sobre Reich, Freud, Jung e Lacan. E que, ademais da proficiência nos mistérios da mente, ainda dava trela para o budismo, o xamanismo, o espiritismo, o sufismo, a antroposofia, o tarô, os búzios e a Rosa Cruz. "Para te impressionar, ela deve ser muito boa mesmo. É o mesmo que um grande chefe estrelado descobrir que o melhor prato é o que se faz num botequim a R$ 30, que não paga nem o estacionamento no restaurante dele." Empolgado, ele concordou. "É mais ou menos isso. Que ninguém vá à doutora Neuza esperando ser abraçado, acolhido e paparicado. O pressuposto da consulta é que precisa se ater ao essencial, e que um homem de 65 anos como eu precisa ser pragmático." Eis o que não deve ser fácil.
Então ele me descreveu a consulta típica. "O horário dela é super concorrido porque é uma das poucas psiquiatras conveniadas. A sala de espera é abarrotada. Quando entro, ela pega minha ficha no computador e me manda subir na balança. Se perdi uns dois quilos que seja, ela se anima e se dispõe a uma escuta ativa. Se eu não perdi uma só grama e/ou se ganhei alguma, ela diz que não vê sentido nas consultas, e que vai avisar ao convênio que não me atenderá mais. Isso só aconteceu uma vez. Desde então, eu trato de mostrar progressos cada vez que vou. Então ela me pergunta sobre a estruturação do escritório, a relação com minha filha, sobre o programa de exercícios físicos e as caminhadas no parque. Se puxo assunto sobre dilemas existenciais, ela corta na raiz e diz que meu tempo para isso ficou para trás."
Sujeito sensível, pergunto como aguenta ser tratado por uma versão feminina do analista de Bagé, de Luiz Fernando Veríssimo. "Quer saber? Não é a melhor interlocutora para divagações como aquelas que eu fazia aos 20 anos quando estudava economia na USP. Mas certamente é a abordagem que mais me teria acrescentado à bagagem das tantas que tive. É claro que muitas horas eu tenho vontade de rir, e desconfio que ela também. Mas tem funcionado." Entendo bem o que ele quer dizer. Lembra meu amigo Robertinho, que vendia bolsas de couro de um fornecedor chinês. "O danado nunca atrasou um pagamento. Mas também nunca admitiu um vale de adiantamento. Eu sabia que não tinha choro nem vela. Então eu tratava de vender como nunca. Foi o patrão que mais me educou." Mesmo assim vai meu amigo com sua Dra. Neuza.
Quem sabe no próximo ano ele não trará melhores notícias?
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