A profecia de meu primo

Conhecemo-nos desde a infância, mas nunca houve grande convívio ou mesmo afinidade entre nós. Muito menos, qualquer traço de animosidade. Somos, simplesmente, diferentes. Mas não desgostamos um do outro. E, por uma hora, a conversa se mantém de pé, c...
A profecia de meu primo

Conhecemo-nos desde a infância, mas nunca houve grande convívio ou mesmo afinidade entre nós. Muito menos, qualquer traço de animosidade. Somos, simplesmente, diferentes. Mas não desgostamos um do outro. E, por uma hora, a conversa se mantém de pé, com uma ou outra risada. Por mais tempo do que isso, porém, não. Mas isso sequer tentamos. Ele tem seus amigos e eu tenho os meus. E, entre nós, um ou outro elo em comum. Enfim, é uma relação como milhares que se tecem no cotidiano dos bares do Brasil. Um dia ele me contou: "Fiz implante de cabelo, estou livre da calvície, graças a Deus. Malho todo dia e tomo um antidepressivo que praticamente não deixa efeitos colaterais. Por fim, quando um namoro esquenta, tomo um Viagra para fazer bonito. Enfim, não está faltando nada, meu irmão". Que bom. E, no entanto, diante da imagem bem constituída, alguma coisa acusava em meu íntimo que faltava a ele a centelha de um algo mais. O olhar era baço, quase triste. 

Pois bem, saí dali pensando que toda aquela situação, protagonizada pelo homem de meia-idade cujo Evangelho de felicidade eu, pacientemente, escutara, tinha um tremendo sabor de "déjà vu". De onde eu conhecia o composto daqueles pequenos construtos psíquicos que, somados, lhe davam certa onipotência de fachada, e que, como tal, não se sustentava? Será que a melancolia que aquele palavrório exsudava, vinha apenas de minha experiência de vida ou estaria ela localizada em algum outro ponto da memória? Foi então que me lembrei de um primo, hoje médico, que, já no segundo ano da faculdade, assacou à mesa de almoço uma intrigante teoria, no fim dos anos 1970. Disse ele, justamente, que o dia chegaria em que calvície, a depressão e a disfunção erétil seriam resolvidas por via medicamentosa ou mesmo cirúrgica. Mas que, inevitavelmente, esses tempos dariam margem a outros males, ainda pouco visíveis naqueles tempos. E continuou comendo, enquanto à mesa pensávamos. Será? 

Se o mérito da análise é irretocável, o que mais me impressionou foi o tom de tranquilidade com que ele anunciou seu achado. Mais parecia o Coronel Aureliano Buendia, de "Cem anos de solidão", no dia em que, depois de passar noites dormindo ao relento, pilotando uma luneta pelos confins do espaço sideral, para grande desespero da família, anunciou, solene: "A terra é redonda". D. Úrsula, a esposa, se tomou de pânico e disse que ele estava ficando louco. Foi o índio Melquíades que, rodado de mundo e autoridade inconteste em todos os temas, serenou os ânimos. Disse que a descoberta do Coronel estava em linha com o que dizia a ciência e que seu marido era um gênio por chegar sozinho àquela conclusão, lá dos confins de Macondo. Pois assim foi com a visão de meu primo. Detalhando-a para mim um dia, refinou a síntese. "Quando estivermos com uns 60 anos, estaremos cercados de homens cabeludos, alegres e fogosos. Mas isso não os livrará da infelicidade". Bingo. 

Mas o que evidenciava o mal-estar de meu colega de meia-idade? Na realidade, pensando bem, talvez o problema tivesse mais a ver com a sofreguidão em viver segundo clichês de felicidade. Pois a estes se somavam, como agravantes, as bazófias ligadas a carro reluzentes, mulheres da idade das filhas e inclusão num círculo social que ele julgava exclusivo, todo ele feito de homens e mulheres que, como ele, rotulavam os predicados do sucesso e os perseguiam. Afinal, frequentavam confrarias de vinho, viajavam sempre que podiam para Dubai e davam gorjetas de três dígitos a manobristas. Era bem possível que, no fundo, nada disso o convencesse de que estava no bom caminho. Mas como ter um mínimo de recuo para se enxergar de fora, se essa onda euforizante não o liberava para um mínimo de introspecção e de engajamento numa via menos cosmética? Como poderia alegar déficits consigo próprio se, essencialmente, ele possuía tudo com que sonhara?    

A verdade é que preciso voltar a conversar com meu primo para ter uma versão atualizada das descobertas que anunciou naquela tarde recifense, quando nada tínhamos do que se tornaria mais tarde a sociedade de consumo. Tenho curiosidade, e medo, de ouvir o que ele vaticina para o próximo meio século, mesmo que não estejamos mais aqui. Assim como naquela época, continuo sendo apenas um diletante da temática e, admito, eu próprio posso ter embarcado em algum modismo em dado momento da vida. Mas não ha dúvida de que a profecia dele me ajudou vida afora. Não sei se minha vida teria sido a mesma se não o tivesse escutado naquele dia. A confirmação que o tempo foi trazendo aos fatos mostrou, contudo, que devemos nos acautelar contra os caminhos fáceis, o charlatanismo, os elixires euforizantes e as receitas redentoras. Minha vida não resultou, necessariamente, melhor. Mas, tanto quanto possível, foi ele quem me vacinou contra a mediocridade.

A mediocridade, ainda hoje, é o que meu primo mais abomina. Tudo o mais, ele acolhe.

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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