Por qual razão há tanta ameaça de divisão na zona do euro?
O projeto da zona do euro “nasceu imperfeito”, afirma em seu novo livro o prêmio Nobel de economia, Joseph E. Stiglitz, ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos do presidente Bill Clinton, professor da Universidade de Columbia e colunista do New York Times. Em “O euro: como uma moeda comum ameaça o futuro da Europa” [The Euro, How a Common Currency Threatens the Future of Europe], Stiglitz analisa os principais problemas de estruturação da zona do euro e de que modo a política do passado ? e de hoje ? está asfixiando o crescimento econômico e causando profundos problemas sociais e desemprego acentuado passados oito anos da crise financeira. Apresenta também ideias de melhorias a serem introduzidas. Na entrevista a seguir, Stiglitz dá detalhes de seu livro, publicado este mês, e sobre como o consenso econômico dominante dos últimos 30 anos vem ruindo rapidamente.
O Brexit suscitou muitas indagações sobre as economias da Europa e do mundo. Houve inúmeras ocasiões na gestão da União Europeia em que surgiu a pergunta se a parceria entre seus países e regiões se desfaria em algum momento. Contudo, em primeiro lugar, gostaria de saber se você ficou surpreso com o resultado da votação do Brexit.
Lembre-se: todo o mundo achava que o resultado seria meio a meio. As pessoas achavam que, no fim das contas, o Reino Unido permaneceria na União Europeia. Elas subestimaram a magnitude do descontentamento. Vimos esse descontentamento durante as primárias nos partidários de Trump e Sanders. Dado o nível de descontentamento, que pegou de surpresa o establishment americano, talvez o resultado da votação do Brexit não devesse causar espanto.
Seu livro traz como subtítulo: “Como uma moeda comum ameaça o futuro da Europa”. É um pensamento bastante sinistro. Ele mostra que o euro era uma coisa imperfeita desde sua concepção: “O euro não atingiu nenhum de seus dois objetivos principais: prosperidade e integração política.” Você afirma também que, desde a crise financeira de 2008, coisas que deveriam ter experimentado um declínio, aumentaram, e o que deveria ter aumentado, entrou em declínio. Portanto, a dívida aumentou, em termos absolutos, bem como em termos relativos ao PIB de muitos países. A desigualdade aumentou. Você também chamou a atenção para a patologia social [tendências] onde os suicídios aumentaram. Há muita gente sofrendo com o desemprego e outras coisas; a renda despencou. Você poderia falar sobre o que aumentou, mas deveria ter diminuído, e vice-versa?
O que surpreende é que a crise de 2008 teve origem nos Estados Unidos. Normalmente, diríamos que o país onde surge a crise é o que apresenta os piores sintomas e o que deveria ter a recuperação mais sofrida. Eu não diria que tivemos uma recuperação plena, mas estamos nos saindo muito bem. Na Europa, a situação é diferente. O nível de desemprego está muito alto. O desemprego entre os jovens é muito significativo: é duas vezes maior do que o desemprego médio. Nos “países em crise”, os números são inacreditáveis. A retração econômica nesses países é mais forte do que na Grande Depressão. A Grécia é o pior exemplo: o PIB caiu 25%, o desemprego está em 25% e o desemprego entre os jovens é de mais de 60%. É o símbolo por excelência de tudo o que não deveria ter acontecido. O interessante é que enquanto a Troika, parceria entre o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o FMI, se concentrava em diminuir a dívida e promover a austeridade para limitar os gastos dos governos, esses países acabaram por aumentar os índices dívida/PIB, de modo que têm hoje menor capacidade de sustentação. A razão para isso é muito simples. O índice dívida/PIB tem dois números ? a dívida no numerador e o PIB no denominador. O que eles fizeram foi encolher o PIB. Se você encolhe o PIB, os índices dívida/PIB aumentam e a dívida se torna insustentável. A Troika privilegiou o numerador, a dívida, e não deu atenção alguma à forma como suas políticas fariam a economia encolher. Aqui cabe uma ressalva. A teoria deles era de que sua estratégia faria a economia crescer, mas essa teoria, chamada austeridade, foi desacreditada. Foi o que tentamos fazer nos Estados Unidos na época de Herbert Hoover. Contudo, eles foram em frente acreditando nessa política. Aqueles de nós que disseram que tal estratégia era um erro – que afirmaram que estava errada quando foi tentada no leste asiático pelo FMI, que disseram que ela estava errada também no caso da Argentina – acertaram mais uma vez. O que realmente acho interessante é que agora até mesmo o FMI mudou de posição em relação às políticas contracionistas ? a austeridade é contracionista e leva à redução do PIB. Somente a Alemanha, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia insistem nessa visão ideológica de que tais políticas funcionariam.
Os problemas que você aponta na Grécia e em alguns outros países europeus persistem oito anos depois da crise financeira. Geralmente, depois de uma recessão, há uma espécie de recuperação espontânea passados três, quatro ou cinco anos.
Dois anos aproximadamente.
Oito anos depois eu imaginaria que alguém teria alguma explicação a oferecer. Gostaria de falar mais sobre as ideias econômicas em geral que você tem percebido ali. Antes disso, porém, se pudéssemos nos concentrar apenas um pouco mais na Europa e nas políticas de austeridade. É interessante que alguns países europeus, por exemplo, no norte principalmente e a Alemanha em particular, tenham optado por culpar as vítimas. Você diz que embora a Alemanha e outros tenham procurado culpar as vítimas, esses países sofreram como consequência de políticas equivocadas e de falhas estruturais na zona do euro. Portanto, na sua opinião, o que aconteceu não foi apenas a adoção de políticas errôneas. Eles estão culpando efetivamente as vítimas dessas políticas equivocadas.
Correto. Há dois pontos importantes nesse trecho que você leu. Em primeiro lugar, quando eles dizem: “Olhe, esses países se comportaram mal e foram esbanjadores. Estão apenas recebendo sua justa recompensa.” O fato é que a Irlanda e a Espanha – dois dos países que passaram por uma crise profunda – na verdade tiveram um superávit antes da crise, nenhum déficit, e um índice dívida/PIB muito baixo. Essa crise levou à sua situação atual de déficits e dívida, e não o contrário. Portanto, estava muito claro que sua análise em torno do que levaria ao sucesso estava completamente errada. O ponto crítico que levanto ? e é aí que eu difiro de várias outras pessoas que estudaram o que deu errado na zona do euro ? é o amplo acordo de que algo está errado, conforme você disse, oito anos depois desse tipo e estagnação. Algumas pessoas dizem que foram apenas as políticas. Se pelo menos não tivéssemos permitido à Alemanha ditar as regras. Se pelo menos tivéssemos políticas melhores. Um dos principais temas do meu livro é que não foi isso: foi a estrutura, o projeto da zona do euro, ele é que deve ser culpado. O fato é que os melhores gestores de políticas econômicas não teriam sido capazes de gerir a Europa em meio a tais dificuldades. Os resultados não teriam sido tão ruins como foram na Grécia – aquilo foi um verdadeiro erro de política. Contudo, o economista mais poderoso teria se visto em uma situação de derrota.
Vamos exemplificar com uma ilustração simples de um dos problemas econômicos básicos que você identificou. Um país que esteja passando por dificuldades econômicas poderia ter recorrido a diferentes opções. Poderia ter baixado os juros, o governo poderia ter gasto mais. Outra ferramenta comum é a desvalorização, a que podem recorrer os mercados se a economia não estiver bem. Essa ferramenta foi retirada dos países que adotaram o euro – já que não têm controle sobre sua moeda. Assim, um país como a Grécia, ou a Itália, têm moedas que não se desvalorizam, o que, possivelmente, estimularia a economia se houvesse uma desvalorização. Seria esse o tipo de inflexibilidade estrutural a que você está se referindo?
Exatamente. Eles, porém, agravaram ainda mais essa situação com outros dois componentes estruturais. Eles retiraram esses dois instrumentos de ajuste. Em seguida, disseram ao banco central: “Vocês deveriam se concentrar na inflação; o desemprego é secundário.” A Europa entra então em uma recessão profunda e, em 2011, o Banco Central Europeu acredita que, de algum modo, haverá um aumento de preços, embora a região esteja em recessão, e eleva duas vezes as taxas de juros. Com isso, nos mostra outro problema estrutural. Disseram: “Ah, a ordem é nos concentrar na inflação. Outros se preocuparão com o desemprego.” A pergunta, é claro, é a seguinte: quem vai fazer isso? Em seguida, amarraram as mãos dos países e disseram: “Vocês não podem estimular a economia através de políticas fiscais, isto é, gastando dinheiro ou cortando impostos. Vocês não podem ter déficit.” Assim, retiraram o instrumento fiscal. Eles retiraram as ferramentas de política monetária – retiraram a ferramenta da taxa de juros, os mecanismos da taxa de câmbio. Não puseram nada no lugar. É isso o que quero dizer quando me refiro à estrutura da zona do euro: pelo projeto, quem quisesse levar a Europa ao pleno emprego teria de violar ou mudar um ou mais desses parâmetros.
Você disse, ironicamente, que essa quase obsessão com a redução da dívida e a preocupação com a inflação, que deveria reduzir o montante da dívida, em muitos casos elevou esse valor também como percentual do PIB. Em outras palavras, as políticas da Troika conseguiram exatamente o oposto do que eles estavam tentando fazer.
Sim. Essas políticas, sob inúmeros aspectos, foram improdutivas. Vou mencionar outro exemplo. As restrições de gastos eram chamadas de “critérios de convergências”. Seu objetivo era fazer com que os países se reaproximassem. No entanto, se observarmos o projeto do sistema da zona do euro em geral, veremos que ele levou, inevitavelmente, na minha opinião, à divergência. Os ricos ficaram mais ricos, os pobres, ainda mais pobres, mais endividados com os ricos e a relação credor/devedor se intensificou. Portanto, em vez de unir mais os países, que era seu objetivo – aliás, um excelente objetivo –, na verdade afastou-os ainda mais.
Em outro ponto fundamental no livro, você declara que a zona do euro tem passado por dificuldades econômicas duradouras porque criou uma moeda única, mas não criou as instituições necessárias para dar suporte à estrutura dessa moeda. Além disso, as regras e regulações da zona do euro não foram criadas para promover o crescimento. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve, por exemplo, tem uma dupla função. Deve cuidar da inflação e também se preocupar com o desemprego, mas você lembra que na zona do euro não se privilegiava o crescimento e nem o desemprego. Toda a atenção estava voltada exclusivamente para a inflação. O que eles poderiam ter feito desde o início? Como poderiam ter mudado as instituições para que funcionassem melhor?
Algumas coisas. Uma delas seria trabalhar mais a política monetária para que atendesse à questão do desemprego e do crescimento, e não apenas da inflação. Aqui, é preciso entender o que aconteceu historicamente. Na época da criação do euro, havia uma ideologia, uma ideia de que se fosse possível limitar os déficits e a inflação, o mercado cuidaria de tudo e bem depressa chegaríamos ao pleno emprego. Essa ideia não foi desacreditada, porém as regras baseadas nessas ideias foram embutidas nas regras do euro, por isso não podem ser facilmente removidas sem o acordo de todos os países. Esse é o problema estrutural fundamental. Há outros problemas que deveriam ter sido identificados desde o início. Por exemplo, quando eu era economista chefe do Banco Mundial, víamos constantemente que quando os países tomam emprestado em uma moeda sobre a qual não têm controle, seguem-se crises da dívida soberana. Os Estados Unidos jamais teriam uma crise desse tipo, pois nossa dívida seria em dólares. Diante de qualquer pressão, podemos imprimir dólares para honrar nossa dívida. Mas quando a Tailândia, Indonésia ou a Coreia tomam emprestado em dólares, e passam a dever mais dólares do que possuem, criam um problema. Essa foi a origem da crise do leste asiático. O que é interessante nisso tudo, e ninguém imaginaria, é que a Europa criou um problema para si mesma, uma vez que os países estavam tomando emprestado em uma moeda – o euro – que eles não controlavam. Eles passaram o controle dela para Frankfurt. Portanto, o tipo de instituição necessária seria do tipo que permitiria, de algum modo, a realização conjunta de empréstimos – como o eurobônus, em que os países tomam emprestado em grupo, e depois cada um deles paga o que deve ao consórcio. Isso resulta em alguma medida na mutualização da dívida. Essa é outra instituição de que precisam. Uma terceira instituição necessária a esses países deve levar em conta que os países da União Europeia eram muito diferentes no início, e era preciso que houvesse um modo de ajudar os mais atrasados, para que acompanhassem os demais. É o que chamamos de políticas industriais, mas não se trata apenas disso. São políticas de tecnologia – políticas que ajudam a transferir tecnologia do melhor, do mais avançado, para o menos avançado. Infelizmente, as regras da Europa proibiam esse tipo de política de equiparação. Assim, foi criada uma estrutura em que o dinheiro poderia sair facilmente da Espanha e da Itália ou da Grécia quando houvesse algum problema. Não havia nenhum seguro de depósito comum que pudesse detê-loo. Essa foi uma força que criou divergências. E não havia como ajudar esses países mais pobres a alcançar os que estavam em melhor situação, os países mais ricos.
No seu livro, você menciona a inflexibilidade que o euro impõe a esses países. Trata-se de uma taxa de câmbio fixa. Ao longo da história econômica, as taxas de câmbio fixas estiveram associadas a recessões e depressões e a crises em geral. Portanto, talvez essa não tenha sido a melhor opção. Parece que houve mudanças rápidas demais em algumas áreas e outras não muito rápidas em outras para que o projeto pudesse funcionar em culturas e economias tão diversas.
Correto. Isso nos leva de volta à sua primeira observação, quando você disse que o objetivo era a promoção da prosperidade e da integração política. Era um projeto político. Contudo, a política não foi forte o bastante para criar as instituições que a fariam funcionar. Eles sabiam mais ou menos disso, e esperavam que, com o tempo, o euro funcionasse e trouxesse a prosperidade. Haveria então a vontade de criar as instituições que o fariam funcionar melhor, e essa prosperidade facilitaria a integração política. Contudo, não se pode basear uma reforma desse porte, como é a da moeda única, apenas em expectativas. É preciso prestar atenção nas leis da economia. Esse foi o erro. O que aconteceu foi que aquilo que muitos economistas previram, e que foi então assimilado como um choque – a crise de 2008 foi esse choque: era impossível se adaptar. Isso deflagrou a crise do euro que vem se arrastando há oito anos. A consequência é que a Europa ficou mais dividida. Vou sempre à Europa há mais de 50 anos e nunca a vi tão dividida. As recriminações entre o norte e o sul têm sido realmente muito intensas. O que está claro é que isso tem precipitado movimentos em direção à desintegração política. O fracasso do euro ajudou a criar uma atmosfera que teve algum impacto sobre o Brexit. O Reino Unido não era parte da zona do euro, mas estou certo de que o grande colapso no continente teve a seguinte influência: “Sabe, será que quero pertencer a esse clube? Será que quero pertencer a um clube em que um país diz ao outro o que fazer? E não apenas lhe diz o que fazer, como também as políticas estão totalmente equivocadas. Será que quero que a Alemanha mande em mim?” E a resposta foi claramente “não”. Ela se alimentou indiretamente do Brexit e, com isso, levou ao começo da desintegração política.
Você tem de fato algumas ideias sobre o que a Europa ou a zona do euro deveriam fazer agora. Você prega que agora, infelizmente, todas as alternativas são dolorosas e caras, mas que poderiam ajudar mais do que continuar do jeito que está. Você também propõe a flexibilização do euro. Poderia discorrer um pouco sobre isso?
Sugiro dois cursos de ação. Um deles consiste em concluir finalmente o projeto, isto é, criar instituições que o façam funcionar. Essa seria a primeira e melhor solução. Economicamente, não é grande coisa, mas politicamente, parece que sim. A Alemanha diz: “Não somos uma união de transferência, não faremos coisa alguma para ajudar quem quer que seja.” Portanto, esqueça. Poderíamos ter um divórcio completo, regressando ao mundo conforme ele era antes do euro. É uma possibilidade. Contudo, há muita gente que sente ter feito alguns avanços na criação de instituições que fariam a moeda única funcionar. Isso não basta, é claro, mas houve alguns avanços. Vamos aproveitá-los. É aí que entra a ideia do euro flexível: “Vamos criar, talvez, um euro do norte, um euro do sul, talvez um euro alemão, e dois, três, quatro áreas diferentes para a moeda. Vamos criar instituições que facilitem a coordenação e ajudem a limitar o alcance da variabilidade das taxas de câmbio de uma em relação à outra.” Descrevo no livro como fazê-lo. Com o tempo, se essas instituições funcionarem do jeito que deveriam, as variações dessas taxas de câmbio entre si serão cada vez menores. Em algum momento, a Europa poderá dizer: “Vejam, provamos que criamos instituições que permitirão que a moeda única funcione como nos Estados Unidos – que tem uma moeda que funciona em 50 estados diferentes. Avançamos bastante. Fizemos o que tinha de ser feito.” Em seguida, podemos dar o passo final para, uma vez mais, criar uma moeda única. Basicamente, eles puseram o carro na frente dos bois. O que eu gostaria de fazer é o seguinte: vamos fazer uma pausa. Vamos tentar construir as instituições. Se formos bem-sucedidos nisso, se os testes deram certo, se tudo estiver funcionando bem, podemos então dar aquele último passo.
*Serviço gratuito disponibilizado pela Wharton, Escola de Administração da Universidade da Pensilvânia, e pela Universia, rede de universidades que tem o apoio do Banco Santander.
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