Os robôs devem pagar impostos?
A tecnologia caminha vários anos à frente das leis, mas sempre há exceções. Desde maio deste ano, descansa sobre a mesa do parlamento europeu uma proposta conhecida como “Relatório sobre pessoas eletrônicas”. Trata-se de uma tentativa de se adiantar à invasão que a robótica fará nas empresas e no sistema tributário sobre o qual se edificou o estado de bem-estar da maioria dos países. A ideia é simples: os robôs devem pagar impostos - é isso o que defende Mady Delvaux, deputada do parlamento europeu. A premissa sobre a qual se sustenta a proposta é a de que, em alguns anos, com a disseminação da inteligência artificial no mundo do trabalho, milhares de vagas serão destruídas, o que se traduzirá automaticamente em uma redução significativa de arrecadação pelos cofres públicos. O fato colocaria em dúvida a viabilidade do sistema que mantém a seguridade social nos países do velho continente.
Embora o tema nem sequer seja debatido em outras regiões, como os Estados Unidos, onde os subsídios (ao desemprego ou à saúde pública) são menos amplos, na Europa é uma preocupação que está se estendendo. Na Espanha, por exemplo, o secretário geral do sindicato da UGT, Pepe Álvarez, chamou a atenção para o assunto ao reivindicar publicamente que os robôs contribuam também para a previdência social como se fossem um trabalhador a mais. Essa ideia, que conta tanto com partidários incondicionais quanto com detratores, propõe a “criação de um estatuto jurídico específico para os robôs, para que pelo menos os robôs autônomos mais sofisticados tenham condição de pessoa eletrônica, com direitos e obrigações específicas, entre elas a de reparar os danos que possam vir a causar, além da aplicação da personalidade eletrônica aos casos em que as máquinas tomem decisões inteligentes autonomamente ou interajam com terceiros de forma independente”, conforme se depreende do documento entregue à Comissão Europeia. Para quem duvida da seriedade da iniciativa, os especialistas assinalam que o projeto entra em aspectos profundos e complexos como, por exemplo, se deve ser criado um fundo geral para todos os robôs autônomos inteligentes ou um fundo individual para cada categoria em função do tipo de máquina, bem como se o pagamento deverá ser feito no momento em que o robô é colocado no mercado, isto é, quando uma empresa o põe para trabalhar, ou ainda se o imposto deverá ser corrigido ao longo de toda a sua vida de trabalho (conforme ocorre com os humanos).
Uma premissa equivocada ou não?
Enquanto os sindicatos aplaudem a ideia, para David Ruiz de Olano, diretor de programas da Escola de Negócios Deusto, o debate parte de uma premissa equivocada. “Os robôs não deixam o emprego. O fato de se tentar fazê-los pagar a seguridade social para compensar a cota das pessoas que substituíram é uma hipótese que não foi demonstrada”, argumenta. Além disso, ele acha que a proposição é equivocada. Como exemplo, Olano cita a multinacional de origem alemã Siemens, com fábricas onde mais de 75% das instalações são totalmente automatizadas, e ainda assim empregam milhares de pessoas. “A inovação empresarial busca a competitividade, mas não destrói empregos. Ela cria empregos de outro tipo, já que permite gerar posições mais qualificadas”, justifica. Trata-se, simplesmente, de uma mudança de papéis que já se vivenciou durante a Revolução Industrial. As máquinas assumem trabalhos que antes eram feitos pelas pessoas, mas quem desenvolve ou mantém o programa de um robô?
Gayle Allard, economista da Escola de Negócios IE, não compartilha dessa visão. “A mecanização crescente terá três consequências: maior desigualdade, pois a cota de trabalho na produção se reduzirá em relação ao capital e porque os novos trabalhos, se houver, serão menos bem remunerados e mais precários; o crescimento será menor, pois a classe média terá menos para gastar; e a arrecadação também será menor”, enumera Gayle. Portanto, os robôs devem pagar impostos no lugar dos seres humanos? Para a especialista, a solução não passa pelo estabelecimento de uma renda universal básica para cada cidadão, já que é uma proposta muito radical. Contudo, Gayle acredita que os governos devem ser previdentes e agir. “Farão falta mais impostos sobre os ricos, mais redistribuição, provavelmente através de subsídios concedidos aos salários dos trabalhadores, bem como um esforço muito maior para a formação profissional”, prevê.
Para Javier López, sócio da Ecija, escritório de advogados especializado em novas tecnologias e professor da Universidade Antonio de Nebrija, as autoridades europeias estão lidando com a questão da perspectiva correta, que é o impacto que a robótica e a inteligência artificial têm sobre os resultados econômicos das empresas, sobre os efeitos da tributação e do cálculo das cotas aliado ao efeito correspondente que isso tem no mercado de trabalho e no regime de contribuições da seguridade social. “Nesse sentido, na seção 23 do relatório sobre pessoas eletrônicas, os Estados membros são convidados a refletir sobre essa questão e a considerar seriamente a possibilidade de introduzir uma renda básica universal. Entendo que com isso se pretenda atenuar o possível efeito que possa ter a diminuição da oferta de postos de trabalho por esse motivo”, opina.
Olano, da Deusto, não pensa assim e é categórico. “Não faz sentido que todos os robôs paguem impostos. Isso desestimulará o investimento em inovação”, alerta. Para ele, o problema está sendo analisado de um ponto de vista equivocado, conforme já ocorreu com o imposto digital da Espanha (imposto aplicado sobre Cds e DVDs devido à pirataria) e que o Supremo Tribunal acabou por declarar legal. “O debate deveria estar voltado para a maneira como o Estado pode fomentar a inovação. Oferecer incentivos fiscais para o investimento em pesquisa e desenvolvimento, em vez de aplicar impostos sobre robôs”, cobra. Javier López, porém, acredita que a proposta “não deveria” ser um freio para a inovação. “A seção 3 do relatório sobre pessoas eletrônicas indica expressamente que é saudável o fato de que cada vez mais se estejam financiando projetos de pesquisa com fundos nacionais e europeus, e pede à Comissão e aos Estados membros que reforcem os instrumentos financeiros destinados a apoiar projetos de pesquisa sobre questões robóticas”, esclarece.
Reforma legislativa
Deixando de lado os debates ideológicos, uma inciativa dessa magnitude suscita dúvidas jurídicas que não podem ser contornadas. Olano crê que está havendo mais casos desse tipo, isto é, casos que colocam à prova os sistemas legislativos. É o que se vê, por exemplo, quando se analisa a questão dos carros sem motorista. Para ele, o legislador não deve tentar colocar obstáculos às inovações, e sim incentivá-las. “Pela lei, do ponto de vista fiscal, com a norma em vigor na Espanha, não seria possível exigir o pagamento de um tributo a um robô, já que a regulação se refere exclusivamente a pessoas físicas. Seja como for, com a legislação atual tampouco poderiam os robôs estar incluídos no sistema de seguridade social, já que o conceito de pessoa eletrônica não existe no ordenamento jurídico espanhol e tampouco no de outros países”, sublinha Olano.
Mas quais características definem uma pessoa eletrônica? De acordo com o que se depreende da proposta apresentada na União Europeia, são aquelas com capacidade de adquirir autonomia mediante sensores e/ou mediante o intercâmbio de dados com seu entorno (interconectividade), bem como a capacidade de analisar esses dados; capacidade de aprender através da experiência e da interação; que tenha a forma de suporte físico de robô; capacidade de adaptar seu comportamento e ação ao seu entorno. “O relatório estabelece ainda que a personalidade jurídica dos robôs (pelo menos os mais complexos) implica que eles podem ser considerados pessoas eletrônicas com direitos e obrigações específicos, inclusive o de ter de reparar os danos que possam vir a causar”, explica Javier López.
Contudo, não há decisão nem reforma que não tenha uma dupla leitura. É verdade que para aprovar o pagamento de impostos pelos robôs seria necessário alterar profundamente várias leis. Um erro de redação ou um aspecto que não tenha sido levado em conta poderia arruinar o objetivo de arrecadação, já que poderia se dar o paradoxo de que, assim como têm deveres, os robôs também poderiam exigir, por exemplo, o pagamento de uma pensão por aposentadoria ou desemprego ao sofrerem uma avaria que os impeça de trabalhar.
Olano, advogado do escritório Ecija, explica que na hipótese de uma reforma que reconheça aos robôs a condição de pessoas eletrônicas, com a possibilidade de serem considerados trabalhadores, poderia então ficar entendido que seria obrigatória sua filiação à seguridade social e o pagamento da contribuição desde o momento de início de suas atividades. “Ao mesmo tempo, ao cumprir esses requisitos, eles deveriam ser beneficiários de direitos próprios da sua filiação à seguridade social, já que o Estado garante a proteção adequada perante contingências e em situações consideradas legais, sendo nulo todo pacto, individual ou coletivo, pelo qual o trabalhador renuncia aos direitos que lhe confere a lei”, acrescenta ele. Olano observa ainda que é preciso levar em conta que, quando se redigiu a Lei Geral de Seguridade Social na Espanha (assim como em outros países), o legislador tinha em mente os seres humanos. Portanto, a reforma que se faz necessária é estrutural, para resolver questões como a do destinatário da assistência financeira (o robô ou seu dono) ou mesmo a forma de aplicar o regime de aposentadoria ou de licenças médicas, entre várias outras.
*Serviço gratuito disponibilizado pela Wharton, Escola de Administração da Universidade da Pensilvânia, e pela Universia, rede de universidades que tem o apoio do Banco Santander.
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