O que o fenômeno China nos revela?
Muito além das questões comerciais e econômicas, o que está ocorrendo na China e deverá seguir acontecendo, sabe-se lá até quando (o horizonte que está colocado é 2049, com metas para 2035), fornece pistas importantes para o desenvolvimento do Brasil hoje. Pistas normalmente relegadas a segundo plano nas conversas, pelo peso milionário dos negócios imediatos. Agora, com a queda prevista das exportações de milho para a China, mais as taxas impostas ao aço, alumínio e ferro exportados pelo Brasil para os Estados Unidos (EUA), e o cenário imprevisível das exportações de etanol, petróleo, carnes bovina e de frango e soja, em função das negociações com o governo Trump, surge a oportunidade de se olhar outros aspectos do futuro das relações Brasil-China.
Começando com vinho, para tornar mais agradável a leitura do artigo, e porque o vinho é um bom exemplo do "modus operandi" da China, sempre focado na autossuficiência – que em breve será alcançada na produção própria de qualidade, já que o país possui a terceira maior área plantada com vinhedos do planeta, e já é o maior produtor mundial de uvas de mesa, resultados de 20 anos de investimento no setor, utilizando principalmente terras semiáridas da região noroeste. Tratamos da lógica chinesa com o consumo de vinho em 2015 e novamente em 2018, quando começaram a mostrar resultados em qualidade.
Enquanto a China investia na produção e consumo de vinho (hoje é o oitavo maior consumidor mundial), vinícolas brasileiras se recusavam a tentar vender na China, apesar da presença de todos os países produtores nos grandes supermercados chineses. Pois bem, no ano passado a China passou a ser o 51º país na Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), e é só uma questão de tempo para encontrarmos vinhos "Grande Muralha" e de outras marcas nos supermercados em São Paulo, Rio etc., na lógica futebolística de que "quem não faz, leva".
Fenômeno semelhante ocorreu na China com o consumo de leite de vaca, iogurte, queijos etc., igualmente pouco consumidos pela população do país até o início dos anos 2000. Em 2007, havia campanhas de propaganda na tevê, jornais e revistas, e reuniões nos condomínios residenciais em Beijing, Shanghai e em outras grandes cidades chinesas, para promover o consumo, focando nas propriedades nutritivas do alimento. Faziam parte de um "pacote" do governo da China de estímulo efetivo à produção e ao consumo de leite de vaca e derivados por toda a sua imensa população.
Conheci de perto esse trabalho – vivia em Beijing na época –, e em 2010 preparei e acompanhei comitiva do Polo de Excelência do Leite, de Minas Gerais, visitando granjas leiteiras, instituições de pesquisa, supermercados e as maiores indústrias de lácteos, nas principais regiões produtoras da China. Na época, os produtos brasileiros não tinham preços competitivos e ficaram de fora do mercado chinês. Hoje, a China produz e consome mais leite de vaca do que o Brasil. Logo haverá queijo "Grande Muralha" ou algo assim disputando espaço com os produtos de Minas Gerais e São Paulo nos supermercados, mercados e feiras livres no Brasil.
Evidentemente, há muito mais exemplos do que pode conseguir o conjunto "decisão estratégica/ planejamento/investimento/acompanhamento rigoroso do investimento", para desenvolver regiões e um país inteiro, mesmo gigantesco como a China (e o Brasil). No que diz respeito ao "agro", mais cedo ou mais tarde a China mostrará os resultados do investimento que está fazendo para a sua autossuficiência em suco de laranja, mel e café – o que não a impedirá de continuar importando do Brasil, mas por ter alterado o limiar da necessidade, impondo preços e condições mais duras para comprar. Poderá inclusive deixar de comprar por algum tempo, como já faz de vez em quando.
A situação dos manufaturados, com mais e menos tecnologia, é radicalmente pior. Pensando no que a China pretende alcançar até 2035, ou o Brasil investe pesado em ferrovias, ou nós ficaremos a ver navios em todas as áreas. Com o agravante que, sem a competitividade que as ferrovias podem devolver à economia brasileira, aumentarão tanto as distâncias, entre a produção e o comércio internacional industrial da China e do Brasil, que até 2035 teremos perdido totalmente as condições de voltar a viabilizar a indústria nacional, tal o domínio do mercado brasileiro por produtos da China (e de outros países do Leste da Ásia).
Como é que a China, cuja economia (e indústria) nos anos 1980 era menor ou igual à do Brasil, conseguiu chegar em 2025 com mais de 30% da manufatura mundial e quase 20% das exportações totais, enquanto a participação brasileira na indústria global caiu abaixo de 2% e nas exportações é pouco mais do que isso, majoritariamente recursos naturais? Quanto desse crescimento industrial espantoso teve a ver com as taxas predatórias de juros no Brasil, e, na China, os investimentos pesados em educação, ciência e tecnologia e inovação, zonas de processamento de exportações, e em infraestrutura de transportes e telecomunicações?
Campeã mundial de robótica, para adiantar-se à redução de sua população economicamente ativa (PEA), a China está tentando escapar do colapso populacional previsto para o final desse século, situação parecida com a do Rio Grande do Sul, e um pouco pior que a de Santa Catarina e Paraná.
Colapso populacional que reduzirá o Japão e a Coreia do Sul à metade da quantidade de habitantes atual, e dobrará a quantidade de pessoas idosas, estrangulando sua PEA e os recursos para a Previdência. Por isso, os três países estão na frente em quantidade de robôs industriais no mundo. Até 2035, a China deverá atingir um total de 400 milhões de pessoas com 60 anos de idade ou mais, quase 30% da sua população total, o que deverá dificultar muito a sua Previdência, que então concorrerá diretamente por recursos com as políticas públicas implantadas visando aumentar a taxa de natalidade, hoje uma das maiores prioridades do Governo Central.
Precisamos conhecer a China, estudar a fundo o que fizeram nos últimos 50 anos, para entender como conseguiram chegar aonde chegaram, e onde estarão em 2035, e em 2050 – quando o país pretende atingir a condição de maior potência tecnológica mundial. O Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável pode ser a instância adequada do governo brasileiro para esse "esforço", visando proporcionar ao país o máximo de compreensão a respeito do "fenômeno China", de maneira a permitir que o Brasil defina estratégia para retomar o seu desenvolvimento no atual contexto de disputas EUA-China.
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