O ônus de ser multicultural

Que a Nissan e o governo japonês armaram um golpe para destronar Carlos Ghosn do comando da grande aliança que ligava a empresa à Renault e à Mistubishi, já não resta tanta dúvida. E, segundo a evolução dos acontecimentos, poderemos fazer um balanço ...
O ônus de ser multicultural

Que a Nissan e o governo japonês armaram um golpe para destronar Carlos Ghosn do comando da grande aliança que ligava a empresa à Renault e à Mistubishi, já não resta tanta dúvida. E, segundo a evolução dos acontecimentos, poderemos fazer um balanço mais estratégico de ganhos e perdas dessa manobra na edição de amanhã, sexta-feira. Desde já, acredito que o dano de imagem para o Japão será colossal.   

O que sim podemos fazer hoje é apontar as dez razões cardeais pelas quais os homens de perfil marcadamente intercultural suscitam cautelas, reservas e antipatias, até no coração de seus aliados. No caso de Ghosn, a figura singular dele parece hoje suscitar reticências em várias partes do mundo, justamente pela capacidade de ser empático e de funcionar em diferentes latitudes. Inveja? Certamente. Acaso há sentimento mais humano? Não. 

a) O homem multicultural está cognitivamente bem ferramentado para cruzar na diagonal os ambientes. Estadistas sem Estado, diplomatas corporativos que falam de igual para igual com presidentes e reis, eles podem fundir os melhores elementos de diferentes culturas nacionais para deles engendrar uma receita sincrética, cujo sucesso parece ter algo de sinistro e cabalístico. Por que ele pode e eu não?, se perguntam os medíocres;

b) Ora, Ghosn nasceu na área da Amazônia legal brasileira, no estado de Rondônia. Morou no Rio de Janeiro já como executivo, estudou no Líbano, terra de seus pais, até a eclosão da guerra e foi cursar faculdade em Paris, onde frequentava os cinemas do Quartier Latin. Depois morou nos Estados Unidos, antes de voltar à França para brilhar com mais fulgor. Para o comum dos mortais, ele tem mesmo é que fenecer hoje numa cadeia japonesa. E por quê? Inveja. 

c) Inveja porque Ghosn tem a abrasividade brasileira, o cérebro cartesiano gaulês e um coração levantino, ancorado no Oriente-Médio. Ghosn fala seis línguas com proficiência e em todas tem um leve sotaque que trai a trajetória múltipla. Ora, o homem comum vê nisso uma prova de que ele não tem um lugar para chamar de seu, daí ser fácil acusá-lo de argentário e sonegador. Era o que se fazia com os judeus antes de se deflagrar um "pogrom"; 

d) O homem multicultural tem uma capacidade de aprender que é quase osmótica. Fino observador de costumes, ele abre sem medo a caixa preta dos mitos e tabus de um povo e os coloca a serviço de uma causa vitoriosa, conseguindo tirar sinergias de situações que antes só eram vistas como ameaçadoras e paralisantes. Assim os coletivistas japoneses se curvavam gratificados aos rompantes individualistas de um vencedor inconteste;  

e) Colaboradores que acompanham de perto tanto virtuosismo se sentem fascinados pela espontaneidade como ele comunica com clareza, implodindo todos os "plots" potenciais contra os quais os conservadores se acautelam diuturnamente. Ghosn era venerado como um Samurai no Japão, como um Monarca na França e como um Imperador no mundo. Sua força era justamente ser o elo mais forte de várias pequenas cadeias. Haja ódio; 

f) Ghosn ganhava muito pouco. Fazer o que ele fez pela contrapartida de R$ 100 milhões/ano é uma prova viva de que a motivação não estava no dinheiro. Ghosn poderia ganhar pelo menos o dobro disso numa montadora americana ou em qualquer banco de investimento. Se o salário dele no Japão era três vezes maior do que o do presidente da Toyota, isso não era problema dele. Ele não fez carreira no Japão. Ele só salvou uma montadora nipônica; 

g) Ghosn era imperial? Um pouco napoleônico? Sim. Segundo comentou um jornal francês, ele respeitava a máxima dada por De Gaulle: "Um homem de Estado não pode ter amigos". Ora, na pátria que ele forjou, o tratamento interpessoal dispensado aos colaboradores mais próximos era formal, o que não é incomum na França. Isso não quer dizer que ele não soubesse sorrir e ser afável – e aqui sou testemunho dessa verdade; 

h) Homens e mulheres interculturais são mesmo profundamente solitários. Eles não chegam a ser um de nós, mas parecem saber tudo o que conta a nosso respeito. Por outro lado, como é que um indivíduo enraizado em suas pequenas convicções se sente, quando vê alguém assim alternar o português com o árabe, o japonês e o inglês? Ora, sendo essas línguas tão distintas, é lícito acreditar que ele tenha muitas personalidades dentro dele;

i) A partir dessa constatação bisonha, o leigo vai facilmente lhe atribuir um desvio de personalidade. Onde já se viu? Um homem desses só pode estar a serviço de si próprio e de mais ninguém. Então rebobina-se o filme até três anos atrás e se assaca a cena do terceiro casamento de Ghosn, que aconteceu num espaço social do palácio de Versailles. É fácil então à luz das imagens jogá-lo na vala comum dos exibicionistas e novos ricos. Tudo o que ele não é;

j) Disse uma vez um político brasileiro em visita a um museu na Bélgica que ficou paralisado diante do quadro que mostrava Ícaro tentando alçar voo com suas asas de cera, que se derretiam sob o calor do sol. Era um alerta contra os que ousavam desafiar as potestades e os deuses. Era um convite à mediocridade. Quem tem bagagem intercultural, ama Ícaro e não desiste. 

Gambatte, Ghosn-san.          

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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