Erro de cálculo do Japão

Vinte anos atrás, eu já trabalhava intensamente com o Japão há quase quinze. O que quero dizer com isso? Que quando vi a eclosão do discurso algo xenófobo de Shintaro Ishihara, autor de "O Japão que pode dizer não", e então defensor do rearmamento nu...

Vinte anos atrás, eu já trabalhava intensamente com o Japão há quase quinze. O que quero dizer com isso? Que quando vi a eclosão do discurso algo xenófobo de Shintaro Ishihara, autor de "O Japão que pode dizer não", e então defensor do rearmamento nuclear nipônico, entendi que aquilo era sim um arroubo populista dirigido às novas gerações, mas que refletia a inquietação quase legítima de quem se tornara um gigante econômico e continuava a ser um anão militar. O recrudescimento de trovoadas nacionalistas não chegava, portanto, a comprometer o papel do país no concerto das nações. E seus principais problemas eram os elevados níveis de poupança interna e a estagnação do PIB, no que ficou conhecido como o período em que a economia andou de lado, como fazem os caranguejos.

Ora, daquela primeira noite que dormi em Shijuku, vendo os néons da capital, até esta semana, o Japão vinha tentando se tornar um ator mais legível e palatável à comunidade de negócios internacional. O golpe armado por Hiroto Saikawa (foto), o ex-número 2 da Nissan, contra seu chefe e mentor, o brasileiro Carlos Ghosn, desnuda práticas feudais nunca sepultadas e confere ao Japão a aparência de uma tremenda caixa-preta, o que só reforça as reservas enraizadas ocidentais de que o país consagra práticas sinistras. Isso porque, de comum acordo com o Miti, o Ministério da Indústria, e com informações a conta-gotas vazadas para a imprensa – depois de tê-la chamado para filmar a chegada do avião de Ghosn a Haneda –, a intenção do Corporate Japan é a de desgastar o dirigente e justificar sua demissão. 


A manobra de flanco, até o momento sem qualquer respaldo que justifique a prisão cautelar, nada contribuirá para aumentar os modestos 4% de investimento direto estrangeiro na economia do país. Ou seja, um nada, quando se sabe que o mesmo índice numa economia como a da França é de 34%. Ora, Ghosn encarnava como ninguém a possibilidade de que o Japão poderia sim atrair dirigentes estrangeiros para o topo de suas organizações, onde hoje representam apenas 2,5% dos presidentes. De mais, Ghosn assoma a olhos treinados como vítima do próprio sucesso. A possibilidade de unificar as empresas da aliança – Renault, Nissan e Mitsubishi – numa espécie de entidade jurídica única, ao cabo de 20 anos de gestão exitosa, trazia uma simbologia que se revelou intolerável para o Corporate Japan. 


Na verdade, a Nissan – forma abreviada de Nihon Sangyo –, um conglomerado quase centenário que geria marcas como a Isuzu, NEC e Hitachi, forneceu ao exército imperial caminhões, aviões e motores. Ora, essa empresa-símbolo estava a um passo de ser transferida para controle acionário francês, o que os setores mais sensíveis viam como mais do que um descalabro, um crime de lesa-pátria. O mesmo se aplica à Mitsubishi, organização icônica da modernização japonesa desde os tempos da Era Meiji (1868-1912). Assim sendo, esta seria a última viagem de Ghosn ao Japão em 2018 e, ao regressar em fevereiro de 2019, arbitraria um jogo para o qual só ele estava legitimado. Nesse contexto, a comunidade de negócios entende que o establishment  judicializou para frear a aliança. E o fez da forma mais torpe possível. 

No mais, a reforçar a percepção de que o Japão não consegue se desvencilhar das amarras culturais, foi patético ver Hiroto Saikawa, apenas horas depois da detenção de Ghosn, vir a público alegar que havia uma concentração muito grande de poderes nas mãos de uma só pessoa e que o sucesso atual da Nissan se devia ao esforço de gerações, inclusive dos antigos dirigentes. Convenhamos, todo mundo sabe que quando Ghosn assumiu o barco, lá se vão quase 20 anos, a Nissan estava adernada e só um gaijin poderia reverter os tabus que sempre pautaram o Arquipélago, como empregos vitalícios e práticas de gestão patriarcais. No curto prazo, Saikawa pode ter a sensação de que cravou um tento com seu gol de mão. A médio e longo prazos, o Japão está indelevelmente maculado. 

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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