Até ficar com dó de quem?
Serviços são como teatro, uma perfomance em tempo real precedida de treino, organização e divisão de tarefas. Para que as coisas saiam a contento quando as cortinas se abrem, muito esforço é empreendido nos bastidores, pelos próprios atores ou seus assistentes, na intenção de que aquilo que é visto em cena pareça o mais natural e convincente possível. Daí que geralmente ao público não seja facultado o acesso às coxias: tudo tem de ser cercado por certa aura de magia, para preservar o encanto — e omitir as misérias – de quais são feitos todos os espetáculos.
Por isso minha surpresa ao ler que ao menos duas grandes potências do ramo do entretenimento estejam oferecendo aos clientes acesso à intimidade de seus "artistas" e "produções". Na Disney World, por exemplo, é possível, por uma taxa que varia de US$ 74 a US$ 229, visitar as instalações subterrâneas do parque, onde ficam escritórios, vestiários, cozinha, lavanderia e sala de descanso dos cast members – maneira pela qual a equipe é chamada internamente. Considerando que a postura exigida de todos os que trabalham por lá é de total amabilidade e disposição em atender os guests, os tais túneis e suas instalações são (ou eram) um dos poucos lugares em que os profissionais podiam relaxar, livrando-se das pesadas fantasias e do sorriso permanente. Agora, "não dá mais para a Cinderela circular por aí descabelada, sob o risco de ser flagrada", nem o Mickey arrancar cabeça e luvas para se distrair com bobagens no celular. Há que representar 100% do tempo.
Enquanto isso, passageiros do Armonia, um cruzeiro da multinacional MSC que se desloca entre Veneza e Mykonos durante a alta temporada europeia, podem conhecer o "subsolo" da embarcação – desde que paguem €59 adicionais e não levem telefone nem câmera para a incursão. Lá, veem "indonésios, filipinos e malgaxes" às voltas com "2 mil roupas de cama e 5 mil toalhas" que precisam ser lavadas todos os dias (p.35), quando não com o calor e a agitação das cozinhas ou o "apertamento" dos dormitórios compartilhados. Mas considerando que "alguns têm um dia de folga por semana, outros não têm nenhum", e que se estivessem em seus países de origem ganhariam um terço do recebem no barco, tudo parece em seu lugar. Fair enough.
Como tudo o que vem do marketing, o acesso pago ao making of dos serviços parece simpático e inofensivo, uma forma de maximizar a rentabilidade de um cliente cativo, pedindo para ser entretido – e, quem sabe, despertar nele a consciência de que, por trás de cada gesto de cortesia e capricho, existe técnica, diligência e humanidade, e não acaso ou automatização. Um jeito de valorizar o que se faz e o que se entrega todos os dias.
Por outro, não deixa de soar como uma espécie de mais-valia simbólica disfarçada de curiosidade legítima, uma maneira de tornar ainda mais óbvias as diferenças entre quem serve e é servido – e, claro, não a fim de que qualquer sensibilidade seja tocada, exceto a título de alívio: "ainda bem que eu nasci do lado de cá do capitalismo".
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