Tanto faz
Em tempos idos, chegando de uma viagem mais demorada ao exterior, ia direto para o escritório para evitar a tentação de um sono caseiro em horário inoportuno. Na sala de reunião, convocava meus gerentes de uma só vez, explicava como ia o mundo, os desafios mais prementes que nos esperavam, ia almoçar com dois ou três para quem trouxera uma pauta mais crítica e, a depender do país de onde estivesse chegando e das horas de fuso que me castigassem, convidava outros tantos para um drinque em casa para confabulações finais. No dia seguinte, os frutos mais concretos de minha missão estavam processados e distribuídos para outras áreas, como forma de dar aquele capítulo por encerrado. Daí ajustava o azeitamento de algumas rotinas, resolvia problemas de pessoal – capacitação, treinamento, remanejamento –, lia um cartapácio de dados para as ritualizadas reuniões de diretoria e, em poucos dias, já tinha algum compromisso em Washington, Tóquio ou Paris. O que quero dizer? Que a presença contava. Só à base do olho no olho, podíamos processar a contento as mil variáveis novas que eu trazia na bagagem e no fundo das retinas bem rodadas.
Vamos então trazer este quadro para os dias de hoje. Em primeiro lugar, já praticamente não ha mais espaço para as perguntas "o que está acontecendo por lá", ou "o que eles estão achando da situação brasileira". Ora, o lá já é um lugar que não existe. Lá é aqui, e aqui é lá. Um protesto que aconteça diante da Casa Branca, uma escaramuça na fronteira com o México, uma crise de temperamento do líder norte-coreano ou uma faca na multidão no centro de uma bucólica cidade mineira, tudo isso integra as gotículas do tsunami global que dá várias voltas à Terra no espaço de um minuto. Da mesma forma que aqueles eles da segunda pergunta tampouco existem. São mero artifício retórico já que eles somos nós, e nós todos somos os eles de alguém. Portanto, a menos que resida numa subjetividade ao alcance de muitos poucos – que lhes cacife um poder de direito ou de fato, simbólico ou efetivo –, seu regresso à estação de trabalho é de imensa banalidade. Pois já não há novidades com que se possa surpreender a base, nem ineditismo no sucedido aqui, que já não tenha chegado a seu conhecimento. Salvo por fatos do cotidiano, ligados a incidentes pessoais de alcance menor.
Ora, não pede grande capacidade de abstração concluir que estes homens providenciais de algumas décadas atrás, sofreram muito para se adequar à realidade em que seu prestígio desmoronou, e se ressentiu de inexorável corrosão em face da dinâmica global. Isso assimilado, o que não dizer do sentimento – esta é a essência mesma do que tratamos aqui – que acomete cabeças menos estreladas, aquelas de quadros intermediários de menor calibre? Como devem estar lidando com essa perda de importância relativa? Pois bem, imagino que muito mal. Pois se já era desesperador para a força de trabalho perder a relevância de que gozava outrora, o que acontece quando o que fazem ou deixam de fazer cai na vala da indiferença, e no lugar comum do tanto faz? O que dizer daqueles que se sentiam prescindíveis diante de um novo software ou de um robô? Agora, com os sucessivos breakthroughs em Inteligência Artificial, o que restará? Nesse contexto, até motoristas de Uber, depois de ter desbancado os taxistas, já se rendem à iminência de carros sem piloto, com toda a malha de trânsito integrada por um comando único que poderia zerar os acidentes.
Não é o propósito deste artigo explorar os contornos desse novo mundo que se apresenta. Conhecemos bem a dinâmica ameaçadora. Muitas vezes, a tecnologia simplesmente suprime certos postos de trabalho. Menos mal quando o Estado (sic) ou o empregador se preocupam não em preservar funções obsoletas, mas sim com o trabalhador, dando-lhe condições de requalificação. Outras vezes, a tecnologia propicia a geração de mais postos, menos mecânicos e mais bem remunerados. Mas nesse ponto, é desafio para a sociedade encontrar fórmulas que estimulem a competitividade e induzam o aperfeiçoamento. É evidente que nada disso é de resolução simples. O que é compreensível, embora grave, é que os políticos acenem com oportunidades mirabolantes para quem se viu do dia para a noite no limbo. No mais das vezes, o fazem por pura ignorância da complexidade dessa dinâmica. Outras tantas, porque é um discurso que vinga, que dá votos, e que confere uma aura de sacralidade à exclusão, como se ela decorresse do capricho de uma elite egoísta que conspirou para privar milhões de famílias de seu ganha-pão, enxugando a folha de pagamento.
A crise de autoestima e a perda de identidade se tornaram endêmicas. E assim ganharam corpo os discursos de redenção fácil, na base da bravata. A tentação dos enunciados simplórios, tisnados pelo patriotismo bufão, como o de Trump, não resistirá à força dos fatos. O mesmo vale para as bandeiras sindicalistas que tentam eternizar práticas espertalhonas. Todos perdemos papel relativo, todos ficamos menores, mas sou daqueles que ainda acham que, vencidos os desafios de inserção nos próximos 30 anos, o mundo viverá uma grande era. O mais provável, contudo, é que nesse ínterim possamos ter mais uma grande guerra mundial com enormes desgastes localizados e alguns tantos traumas duradouros. Oxalá não cheguemos a tanto. E assim, vamos vivendo nossa descartabilidade com dignidade e, sempre que for possível, empenhados em descobrir os nichos em que façamos a diferença. Nem que seja no aconchego do lar, se é que ele resistiu aos solavancos da modernidade numérica, entrincheirada na Califórnia. Lá, o futuro já está escrito. Mas a mão do destino uma hora pode lhes escapar do controle.
Essa dama caprichosa atende pelo nome de História.
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