Sobre gatos e cachorros
Nunca tivemos animais domésticos. Quando criança, eu e meu irmão podemos até ter pensado na possibilidade, mas ela nunca progrediu. A alegação básica era que morávamos em apartamento e que um cachorro seria um transtorno para a limpeza e manutenção do padrão de ordem de mamãe. A segunda, mais questionável, era a de que um dia o bichinho morreria e isso nos causaria imensa dor. Logo para nos poupar de um luto inevitável, ignoravam-se os anos de felicidade que sequer foram tentados. Estanha psicologia. Mas isso é passado. Se a mim nunca fizeram grande falta, talvez a meu irmão tivessem feito bem.
Escrevo essa pequena vinheta bem a propósito de uma cena que vi na tarde de quinta na Route du Polygone, em Estrasburgo. Sentada à mesa ao lado, uma velhinha parecia rir e soluçar ao mesmo tempo. O que estava acontecendo? Tomado pelo bom estado de espírito que congrega as pessoas na primavera, eu a olhei nos olhos e percebi que estavam molhados. Antecipando-se à minha pergunta, ela apontou o janelão do outro lado da rua. Entre uma cortina vermelha e o vidro, um gatinho dava saltos enormes rumo ao alto, certamente brincando com uma mosca ou um inseto. "Ele não vai desistir", disse ela. "Conheço bem os gatos".
No curso da conversa, disse que há apenas três meses tivera que pagar 200 euros a um veterinário para acelerar o fim de uma gata que vivera com ela por 16 anos. Acometida de um tumor cerebral, já perdera o senso de direção e, involuntariamente, lhe aranhava os braços no desespero da dor. Bem entrada nos anos, afirmou que não sabia se era justo se comprometer com outro animal porque, inversamente à equação de minha infância, era quase certo que ela morreria antes, o que deixaria o cãozinho ou gato desamparados. Em suma, foi uma conversa muito ilustrativa para quem é um perfeito ignorante também nesse tema.
Em outros tempos, quando os laços entre as pessoas eram mais fortes no mundo latino, achávamos estranho o apego dos europeus aos animais. Atribuíamos essa ligação ao simples fato de que as pessoas não se frequentavam o bastante, daí satisfazer suas necessidades de afeto. Certa vez fiquei impressionado com uma visita que fiz a um cemitério dedicado a eles nos arredores de Paris, mencionado por Vargas Llosa num livro. Certo é admitir que esse mesmo diapasão afetivo tomou conta do Brasil em grande escala. Vendo a velhinha, pensei em mais essa grande lacuna de experiência que jamais suprirei.
Em suma, são só conversas de primavera.
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