Para Ciba Loureiro
De Paris (França)
"E aí, Dourado, o que me contas de Paris, cara?" Tudo na mesma, rapaz. Que dizer, quase. Hoje começou o desconfinamento na França. Vou pela sombra, é claro...nada de metrô, elevador, essas coisas "Faz você muito bem. Eu não sei é como você aguentou essa solidão prolongada. É para enlouquecer qualquer um. Aqui em Maceió, de frente para o mar, com o maior calor humano dentro de casa, eu já me sinto angustiado. Imagine num apartamento em Paris, sem um conhecido por perto..." Não é assim também. Mas ainda acho bronca pequena para minha capacidade de resistência. Aguentaria mais. É como se eu tivesse sido treinado para esse momento a vida toda. Foram tantas as andanças pelo mundo. Teve vezes de ficar 48 dias na África, sem botar os pés no Brasil. Era tudo tão remoto, tão precário. Hoje pelo WhatsApp, a gente vê meio mundo, dá aula, interage. E por aí? Como vão os negócios? "Eu não posso nem dizer que vão péssimos porque deixaram de existir, não é? Tudo o que eu vinha plantando com tanto carinho, foi pelo ralo. A gente simplesmente não sabe que cara terá o mundo de amanhã. Eu estava tão empolgado com a inauguração de espaços de coworking. Agora fica difícil saber qual o futuro disso, não é?" Quem disser que sabe, está chutando. Mas procure manter o astral. É nosso único ativo. Depois dizem que reforça a imunidade. "Estou tentando, mas tem dias que é dificílimo. Não sei como não houve ainda uma onda de suicídio". Acho que é cedo para isso. Mas é certo que virá. Ou não. Olha, deixa eu te dizer uma coisa, já que estamos falando disso. Talvez você possa me ajudar. "Manda brasa. Se estiver ao meu alcance, resolvo na hora. Espero que não seja dinheiro." Não, não é. Para gastar com quê, aliás? O que eu queria era sua compreensão para uma coisa. "Aí você terá toda. Só não diga que quer se matar." Não ousaria. Veja bem, eu tenho um monte de sonhos a realizar na vida. Mas outras pessoas também tinham, e partiram. "O que você quer dizer, rapaz? Desembuche, homem." Li hoje sobre a morte de uma menina de minha geração. Era de Porto Alegre, morava no Rio, chamava-se Ciba Loureiro, e se foi aos 62 anos. Era alto astral, escrevia bem, tinha um monte de amigos, deixou uma linda carta de despedida no Facebook. Fiquei sentido, mortificado. "Ok, Dourado, vou dar uma olhada na página dela. Mas o que tem isso a ver com você?" Tudo, bicho. Se me acontecer alguma coisa, eu não queria lágrimas. Vivi 62 anos, tive uma vida régia, fizemos mil farras, eu e você, tivemos pais excepcionais, belas namoradas e tomei bons vinhos. Não conheço alguém que tenha visitado tantos países e se realizado tanto na profissão. Se me acontecer alguma coisa, dê uma festa, celebre, mas não chore. Você está aí? "Estou, sim, Dourado. É que deu um nó aqui. Mas deixe de dizer besteira, rapaz. Você está sentindo algum sintoma?" Não, nenhum. Mas sinto todos ao mesmo tempo. Só espero que ninguém lá em cima me pegue pela palavra quando eu dizia que queria morrer em Paris. Era só licença poética. "Eu também tenho pensado muito nisso. Estou no melhor momento do casamento, com a mulher certa, depois de tantas tentativas. Hoje até a falta de grana é coisa que a gente sente que poderá superar bem, nem que seja vendendo algum patrimônio para curtir a vida. Mas também tenho um medo arretado." A gente vai escapar, acredito que sim. Espero que possamos tirar boas conclusões disso tudo. "Tipo quais, por exemplo?" Não sei. Que levávamos a vida da forma certa, e que fizemos bem em cometer loucuras. Fizemos bem em tomar aqueles porres malucos, em encarar as noites em claro, em curtir as madrugadas comendo rabada no mercado municipal, essas coisas. De minha parte, e acho que também da tua, morreríamos sem amarguras. Aliás, sem ser santo, nunca soube o que era inveja ou ciúme. "Eu sei disso, você tem uma vida autoral, meu chefe. Muito sua, difícil de copiar. Eu também tive a minha. Tenho, quero dizer." Temos, vamos ser otimistas. Agora te digo uma coisa. Eu sou um filho do vento, a sensação de liberdade é o maior afrodisíaco que conheci. Vou precisar me reinventar. Esse mundo de fronteiras fechadas não me atrai nem um pouco, mas haverei de achar outros encantos. Fui filho da globalização. Ajudei a criá-la. "Mas não se preocupe, Dourado, vá ver que você está imunizado e não sabe. Com sua rodagem, já está blindado. Quantos países você visitou só em 2020? " Só deu tempo para dez. "Pois é isso, não é possível que esse bicho não tenha tentado cavar um caminho aí dentro. Mas então sumiu, diluído em Scotch, vinho e Stoli." É isso aí. Vamos viver, então? "Combinado, brother. Mais do nunca Carpe Diem." Bebamos em memória à minha valente amiga virtual.
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