Os ossos do ofício
Gosto de escrever. Mais do que escrever, gosto de ler. Tanto quanto ambos, adoro viajar e já fui um grande estradeiro. Na medida do possível, tento ficar perto dos fatos da História. A bem da verdade, nunca desprezei programas de lazer, mesmo porque sou assumido hedonista. Mas nunca foi de meu estilo ir a Miami, Maldivas ou Fernando de Noronha. Não. Gosto de cidades vibrantes e cosmopolitas. De países originais e, sobretudo, de interlocutores de personalidade forte. Com a idade, devo admitir, passei a buscar mais a natureza desde que seja longe do calor, fenômeno que abomino. Ora, como seria normal concluir, quer o faça bem ou mal, termino escrevendo frequentemente sobre viagens, especialmente quando sei que determinado tema pode ser do interesse de pessoas que, eventualmente, por uma série de razões, jamais visitarão rincões remotos como a Islândia, a Albânia, a Bósnia- Herzegovina ou a Macedônia. É claro que haverá sempre uma boa dose de subjetividade no olhar do viajante que sou e, para pontuar o que digo, faço analogias e estabeleço paralelismos com situações que integrem nossa realidade. E aqui que pode morar o perigo, pois nos aproximamos perigosamente dos vespeiros.
Nesse contexto, escrevo para várias revistas e jornais. Algumas vezes, meus escritos transbordam para o Facebook, um brinquedo em que sou ainda noviço, mas onde fiz "amizades" até bastante fiéis. Na maioria dos casos, porém, os artigos e ensaios ficam restritos ao âmbito da publicação. Onde quero chegar? Ora, não importa o público que me prestigia, sempre tem gente que vez por outra assaca palavras do fígado e arremete com vigor contra este escriba apenas bem-intencionado. É claro que não se recomenda rebater na mesma medida, pois há de se respeitar o direito do leitor de se manifestar. E, passada a raiva, ele próprio escreve para se confessar arrependido de ter carregado nas tintas. Nessas horas, a correspondência fica mais cordata e amistosa. Não faz muito tempo, por exemplo, escrevi sobre uma viagem que fiz a Gori, na Geórgia, terra de Stálin. E, a meu modo, fui tecendo alguns paralelismos sobre o ocaso de tiranos de quaisquer matizes. Foi assim que terminei prevendo um fim melancólico para Lula que malbaratou o imenso capital político de que dispunha. Para que fui fazer isso? Fui aquinhoado com uma peça tão contundente que reproduzo abaixo. Indignada, no fundo, me pareceu bela.
"Caro senhor, sou um velhinho de 72 anos, semi alfabetizado, e tenho apenas um predicado: gosto de ler, e leio tudo que me chega às mãos ou aos olhos. Sou bastante atilado e busco sempre a mensagem que o escriba quer enviar. Após todo o floreio (que você fez) sobre Stálin, Marx e Béria, as paisagens do Cáucaso e os cafundós de Caetés, captei o objetivo do artigo. Atacar o maior líder popular que o Brasil conheceu, um homem nascido em um casebre de taipa, chão batido, sem banheiro, sem água, sem comida e que emigrou para o Sul Maravilha fugindo da miséria e como na música do Gonzagão, viajando em um "pau de arara". Pois bem, um homem como esse chegou a receber 29 títulos de "doutor" nas maiores e mais famosas universidades do mundo, atingir o mais alto posto do Estado Brasileiro e ser celebrado por políticos como o presidente do Estados Unidos que o chamou de "o cara", e que agora, atacado por todos os lados pela reação burguesa, consegue ainda ser o preferido em todas as pesquisas para voltar a Presidência. Para encerrar, quero dizer com todas as letras: cadáver insepulto é o "cacete" (Eu, a certa altura, me referira a Lula como um cadáver político à espera de uma sepultura, imagem que reconheço ser forte).
Uau, tive que tomar fôlego para continuar a leitura, confesso. E admito que cheguei a pensar que podia ter exagerado em minhas considerações, sem levar em conta o quanto elas podiam ferir os brios de um senhor (não tão velhinho assim, na verdade) que tem todo direito de alimentar suas paixões políticas e de se ressentir do esfacelamento de uma liderança que, por todos os motivos, fora até pouco antes mítica e quase inquestionável. Mas isso não foi tudo. Numa estocada final, agora dirigindo suas baterias contra o outro garanhunhense que sou eu, ele assacou: "Como o senhor é um privilegiado que conhece o mundo, que viaja aonde quer, que conhece todos os povos e divide suas experiências com seus eleitores, lembre sempre, esteja onde estiver, que nosso país é habitado por miseráveis, comandados por capitães hereditários burgueses, egoístas e desumanos e uma súcia de ladrões que só melhoraria com guilhotina e paredão". E assim ele concluiu. Ora, para quem gosta de gente opinativa, reconheço que fui lautamente servido nesse dia. E, como já disse, foi a partir de minha resposta que nos tornamos adversários cordatos e, até recentemente, nos correspondíamos. São as belezas do tal contraditório. Carne e ossos do ofício.
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