Homo Descartabilis

A primeira e única vez que li a jocosa expressão do título foi na imprensa pernambucana, da lavra fértil do amigo de colégio e historiador Flávio Brayner. Mais precisamente na página Opinião, do "Jornal do Commercio", do qual somos ambos colaboradore...
Homo Descartabilis

A primeira e única vez que li a jocosa expressão do título foi na imprensa pernambucana, da lavra fértil do amigo de colégio e historiador Flávio Brayner. Mais precisamente na página Opinião, do "Jornal do Commercio", do qual somos ambos colaboradores. Autoexplicativa, ela alude aos tempos que vivemos. Ora, se o ser humano sempre foi central ao debate do socialismo e do capitalismo – e de cada uma das vertentes das subcategorias –, certo é que estamos chegando ao ponto em que a tecnologia o relega à descartabilidade absoluta. Em paralelo à sociedade do numérico, na moldura de discreta mutação genética que se opera dentro de nós, as formas de descarte assomam como aberrantes, quando não abjetas. Senão vejamos.

Acompanhando o raciocínio de Brayner, os nazistas fizeram de longe a obra-prima da barbárie. Primeiro, cassaram a identidade civil dos judeus, proibindo-os de estudar e trabalhar. Depois veio a mutilação psicológica, ao perderem o nome em troca de um número e de um pijama listrado. Por fim, se esvaiu a identidade física, sob forma de toneladas de carne e de ossos a ser incinerados, como se na origem daquela cadeia não houvesse seres humanos. Com Nietszche e Heidegger, os pós-metafísicos, o homem passou a ser o que dizíamos que eles eram. Destituídos da humanidade intrínseca em favor de um atributo externo, viraram seres de "mercado". Ora, se o mercado não precisa mais deles, eles serão descartados.   

Não precisamos ir longe para entender como essa doutrina nefanda se infiltra até nas condutas mais comezinhas. Se nas sociedades ditas menos desenvolvidas, ainda resta lugar para a conversa, para o acolhimento espontâneo, para o cuidar do outro como parte de nosso cabedal de amor, a regra que prevalece no geral é que as pessoas sejam enviadas ao antigo Departamento Pessoal das empresas para acertar suas contas. O discurso é invariável. "Muito grato, você me ajudou bastante, sem você não teria superado momentos difíceis. Agora vá lá e pegue seu cheque". A última preocupação do escambo é quanto ao significado original da entrega. E muito menos quanto aos sentimentos de quem será ejetado em pleno voo.  

Eis a essência do Homo Descartabilis. Fique atento. Em vários segmentos, mesmo naqueles mais insuspeitos, você pode ser o próximo a se sentir um lenço usado. Invista, portanto, na sua humanidade – sem esperar que ela se lhe seja atribuída por juntas médicas, empregadores e muito menos pelo mercado. Nada espere das pessoas. Acredite, é a nova lei da vida. É, ademais, a porta de entrada para a morte. Ou, pelo menos, para a morte em vida.  

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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