Finados em vida

Muitas vezes, quando paro para pensar, é desesperador o número de pessoas que já morreram de que sinto falta. Hoje mesmo tentei fazer mentalmente uma lista, quando ainda estava deitado, mas me perdi logo nas divagações que cada uma delas ia me trazen...
Finados em vida

Muitas vezes, quando paro para pensar, é desesperador o número de pessoas que já morreram de que sinto falta. Hoje mesmo tentei fazer mentalmente uma lista, quando ainda estava deitado, mas me perdi logo nas divagações que cada uma delas ia me trazendo. Muitas eram bem mais velhas do que eu, mas hoje já tenho mais idade do que elas, isso quando se foram comparativamente cedo. À idade de outras tantas, eu ainda não cheguei, nem sei se vou chegar, mas isso é o que menos conta. O que importa é que pensar nos mortos queridos nos dá uma dimensão muito palpável da fragilidade da vida. O prazer que nos deu conviver com eles, contudo, prolonga as saudades e, só de pensar em suas diabruras, dá vontade de rir, às vezes de chorar. 

A primeira imagem que tive da morte foi digna de um folhetim de Nelson Rodrigues. Morávamos num edifício alto e isolado, diante do rio Capibaribe, no Recife dos anos 1960, e bem ao lado havia um beco de casas pobres e gente idem. Era lá que eu ia jogar futebol e fazer uma compra de última hora a pedido de meus pais. Certamente não tinha 10 anos quando vi muita gente à porta de uma casinhola onde morava uma costureira. Como as pessoas confabulavam na calçada, achei que estava acontecendo uma festa. Entrei na sala e, para minha surpresa, lá estava a costureira deitada num caixão, ladeada por quatro velas. Pairava um silêncio esquisito, ninguém ali dizia palavra, e o rosto dela estava coberto por um véu rendado. Pensei: então é isto, é a tal morte. 

Mas hoje o ponto de reflexão é outro. Meu pensamento se volta, sobretudo, para meia dúzia de pessoas que, ao que sei, estão vivas, de quem já tive até alguma proximidade, mas que já não tenho sequer a vontade de rever, muito menos de reatar convívio. Em dado momento da vida, diferenças pessoais e condutas em desacordo com os cânones das boas relações, desgastaram as engrenagens do afeto. Ao invés de ficar remoendo-as e discutindo critérios, conceitos ou sentimentos, melhor foi riscá-las da lista dos vivos e frequentáveis. Sem quaisquer ressentimentos ou mágoas, senão com grande alívio e serenidade. Aprendi esse princípio simples com um amigo de negócios e acho que foi boa recomendação. Meu avô materno também era adepto desse critério.  

Então, se você já pensou em esfolar alguém vivo, em levar às últimas consequências seus motivos e suas razões, em esclarecer os detalhes derradeiros que fizeram com que o copo transbordasse de vez, esqueça tudo isso e vá celebrar a vida e as pessoas de quem você gosta. Mentalize que os desafetos simplesmente morreram e sossegue a alma e o coração. Funciona. 

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Domingo, 15 Dezembro 2024

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