Diário de um regresso
Ontem, domingo, 3 de fevereiro, conheci o pior dia de 2019. Sei que outros virão, mas poucos poderão se lhe rivalizar em anticlímax e amargura. Até que ponto tem isso a ver com o Brasil? Muito e pouco, conforme veremos. Mesmo porque não sou desses que jogam a conta toda para Brasília. E com o calor reinante em São Paulo? Bastante, sem dúvida, mas isso tampouco esgota a abrangência do tema. De qualquer sorte, vejamos a sequência do ocorrido na última semana. Assim fazendo, talvez fique mais fácil entender a gênese do anticlímax gerado pela reentrada na atmosfera brasileira, depois de 35 dias ininterruptos no exterior. Afinal, só me dou conta dos fenômenos quando escrevo a respeito deles.
Segunda-feira, 28 de janeiro – Despertei em Berlim e dediquei uns minutos a pouca bagagem que tinha a fazer. Passei pela livraria Dussmann e o baixo orçamento de fim de viagem me obrigou à contenção na hora de garimpar livros. Almocei frugalmente num italiano da Friedrichstrasse, ao lado da estação. Deixei para escrever meus artigos da semana no trem, já que me aguardava uma viagem de 4 horas até Frankfurt. O trajeto foi tranquilo e só me restava achar um hotelzinho no destino, o que consegui sem dificuldade na porta da estação. À noite, sendo o último jantar da temporada, fui a um local simpático de Sachsenhausen. Li até tarde para ter sono na noite seguinte e ajustar logo o fuso.
Terça-feira, 29 de janeiro – Acordei bastante descansado. Finalizei um ou outro texto que ficara decantando desde a véspera e a simpática recepcionista me concedeu ocupar o quartinho até às 13 horas. Para não variar, almocei bem, sabendo que dali em diante teria as cavilações de praxe dos aeroportos. Lá chegando, me acomodei no "lounge" da Lufthansa e me hidratei com espumante gelado. A caminho de Lisboa, onde tomaria a conexão para o Brasil, li o tempo todo até engatar uma conversa com um simpático franco-lusitano. Em Lisboa, subi direto para o salão Victória, onde peguei jornais de toda a Europa, bebi mais um pouco e fui para o portão de embarque. Dormi feito pedra.
Quarta-feira, 30 de janeiro – Em Guarulhos, tudo como dantes. O controle eletrônico de passaporte não funcionava, a escada rolante estava em manutenção e um banheiro estava interditado. Entrei rapidamente no free shop já que este estava vazio e fiz uma provisão de espumante para ter na geladeira, diante das notícias aterradoras que chegavam sobre a meteorologia em São Paulo. O dia era belo, belíssimo. Fui cortar o cabelo, providenciar o pagamento de contas, atender um cliente, encaminhar duas propostas e, sentindo que era temerário dormir cedo, fui assistir no cinema a "The wife", um filme que me encantou de uma ponta a outra. Dormi cedo, não sem antes ler uma hora na cama.
Quinta-feira, 31 de janeiro – Sessões intensas de trabalho pela manhã na região da Avenida Paulista. Depois, agora já refeito de todo, repassei o noticiário do Brasil e do mundo para me posicionar quanto ao essencial e, quando baixou a tarde, fui à Livraria da Vila para me reunir com o escritor Evandro Affonso Ferreira em cuja companhia sempre me divirto e aprendo imensamente. Uma citação dele do nigeriano Wole Soyinka já valeu a pena ter voltado ao Brasil. À noite, tive jantar com amigos na Vila Madalena. De um momento em diante, comecei a acusar más vibrações no ar. Instinto é tudo. O jantar se estendeu por uma hora a mais do que o desejável. Cheguei em casa com mais sono do que imaginava ter. A noite pesara.
Sexta-feira, 1 de fevereiro – Manhã dedicada a escrever e a responder e-mails. Pouca disposição para os textos mais elaborados e reflexivos. Fui almoçar num restaurante japonês e encontrei um velho amigo na região. Mas não havia tempo para conversar como queria. Embora fosse cedo para o filme dele, eu temia que o restaurante fechasse e terminamos nos despedindo atabalhoadamente. Preciso muito conversar com Floreal Rodriguez. À tarde, nova sessão com Evandro. No lindo entardecer, um dos mais belos de que me lembro, fui ver pela TV a sessão do Senado e torcer pela derrota de Renan em casa de amigos. Fizemos bela farra na sequência e, de volta à normalidade das noites, tinha esquecido o quanto São Paulo era divertida.
Sábado, 2 de fevereiro – Eis um dia que adoro. Afinal, sou filho de Iemanjá. Lembrei da jogadora de búzios que uma vez me recomendou lançar um vidro de perfume ao mar na data dela. Mas onde achar mar no asfalto paulistano? Com ingressos para o cinema, pensando na feijoada preliminar, me vi compelido a abortar os dois filmes maravilhosos ( "A favorita" e "Vice") para atender a um pedido de almoço. Fiz péssimo negócio porque troquei bom entretenimento por uma sessão de conversa torta, de cunho manipulador, que eu custei a intuir onde queria chegar. Missão finda, fui ver a derrota de Renan, o que me restituiu alguma alegria. Apesar da boa nova, ela foi insuficiente para aplacar um mal-estar que se tornou físico. Tomei longo banho frio.
Domingo, 3 de fevereiro – Apesar de ter dormido cedo na noite do sábado – uma nulidade de noite comparada à da véspera –, e de ter me desvencilhado das cordas, um imenso torpor me acompanhou até o entardecer. O calor em casa era insuportável. Tentei dormir durante o dia, mas não consegui. A todo instante, soavam campainhas e mensagens telefônicas. Já dava o dia por perdido quando as boas notícias começaram a chegar. Uma de Petrolina, outras duas do Recife. Sim, era uma reversão de expectativas que compensava em parte os dissabores das últimas 24 horas. Ao cair da noite, fui para o aeroporto. O pior, pelo jeito, passou com a decolagem. Na fila de embarque, contei 38 pessoas que carregavam travesseiros para bordo. Que estranho.
Segunda-feira, 4 de fevereiro – Lindo amanhecer no Recife. Chuvoso e nublado, como eu gosto. Cheguei de madrugada e fiquei trabalhando na varanda, preparando meus textos para os jornais e revistas da semana. Parece que não vou há meses à Europa e acolhi bem a proposta de um cliente para voltar lá até o Carnaval. Vou verificar a agenda tão logo desperte para valer. São Paulo ficou para trás e só lamento que a temperatura benevolente não tenha coincidido com minha estada. Paciência, volto em poucos dias. Mergulhado no noticiário, me dou conta tardiamente de uma coisa para cuja gravidade não atentara: Brumadinho foi mesmo uma catástrofe imensa, de consequências terríveis. Fruticultores do São Francisco temem pelas culturas de manga.
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