Aos motoristas Uber
O Uber é mesmo um troço fenomenal. Você pode estar encalacrado num subúrbio parisiense ou decidiu sair mais cedo de uma festa num bairro remoto, e eis que chega um carro em bom estado de conservação que o levará quase sempre a muito bom preço à sua casa. De mais, a transação é feita automaticamente por cartão, e você sequer tem de dar-se ao trabalho de cantar todas as pedras do roteiro. Porque mesmo que o motorista seja verde de tudo no trânsito, o que ainda acontece com muita frequência, um aplicativo – em modo silencioso, de preferência – guiará os caminhos da corrida e você poderá desligar por completo. Ou quase isso.
Assim sendo, o mesmo mecanismo que faz com que o Uber exista – a telefonia celular – traz aqui uma desvantagem à relação que se estabelecia antigamente entre motoristas e passageiros. Ora, como você tem sua vida no telefone – redes sociais, WhatsApp, e-mail e navegação por todos os sites –, é normal que você faça o percurso trabalhando, o que quer que isso signifique. Embora seja essa uma vertente negativa, certo é que as relações já não são tão abrasivas quanto costumavam ser no passado. De mais, o pessoal do Uber tampouco tem os cacoetes dos taxistas de raiz para quem uma corrida sem um bate-papo, quase um embrião de amizade, era uma experiência frustrante.
Até aqui, creio que estamos todos de acordo. Essas digressões resvalam para a polêmica, contudo, quando aludimos a alguns particularismos dessa interação. Ora, muito motorista de Uber foi desaguar como prestador de serviço do aplicativo por falta de opção profissional à altura de suas expectativas. Com o tempo, pode até achar que fez bom negócio e está feliz. Por outro lado, há aqueles que sonham em cruzar com o passageiro de seus sonhos. Quem é ele? É aquele homem ou mulher com amplo poder decisório que discernirá no motorista aptidões para reconduzi-lo ao mundo corporativo. Dai que muitos motoristas de Uber tentam vender seu peixe ao passageiro. E isso nem sempre é bom.
"Qual é tua companhia aérea? Que horas é o teu voo? Já fez teu check-in pela internet? Porque se fez, já te deixo aqui no saguão e é só subir a escada rolante para as salas de embarque. Não esquece que aqui em Congonhas eles estão sempre mudando de "gate", viu? Fique atento ao alto-falante. Passei muitos anos na ponte aérea..." É cansativa essa tentativa forçada de ser visto como um "igual". Não que suas experiências não estejam à altura daquelas do passageiro. Mas há algo de forçado na extrapolação de papéis. É desagradável ter de dizer: "Foque no caminho, amigo, estacione bem e me ajude a tirar a mala, por favor". Pode parecer má vontade, mas não é.
Não é má vontade porque temos coisas mais importantes a fazer do que cortar o barato alheio num episódio de afirmação de identidade bastante trivial. Mas é, por outro lado, porque aquela conversa meio sem propósito, deliberadamente redundante ao que já se sabe, nos atropela justamente quando a cabeça está mais cheia de indagações típicas desse momento, tais como: será que estamos no horário? Há muita fila no check-in? Para quem preciso ligar antes da decolagem? Será que dá tempo de comprar o jornal? E se quiser comer alguma coisa, qual das lanchonetes seria a menos ruim? E enquanto tudo isso acontece, você tem de ouvir confidências. "Trabalhei na Bolsa durante 20 anos".
É claro que a cultura Uber diminui o que o holandês Hosfstede chama de "distância de poder", um parâmetro confiável para avaliarmos a cultura vigente num país. No Japão, onde ela é estratificada, motorista é motorista, passageiro é passageiro. Na África como um todo, nem se fala. Na Suécia, essa distância some e mesmo que o passageiro seja o rei, a conversa rola em bom diapasão. Acho salutar e instrutivo que se estabeleçam relações francas e igualitárias entre os motoristas Uber e seus passageiros. Desde que a vontade do primeiro corresponda à do segundo. O problema é que o empenho dos mais velhos no Uber é mostrar que o lugar deles não é lá, que foram tangidos pelos azares da vida.
Nesse ponto, o azar é o do passageiro que topar com um deles.
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