Ano novo, vida velha

Passado o réveillon, que a cada ano é festejado com menos transbordamento e mais sobriedade, acordei no dia primeiro de janeiro com bastante disposição, pronto para enfrentar as delícias de uma estrada. Estando em Salzburgo, onde a chuva por certo pe...
Ano novo, vida velha

Passado o réveillon, que a cada ano é festejado com menos transbordamento e mais sobriedade, acordei no dia primeiro de janeiro com bastante disposição, pronto para enfrentar as delícias de uma estrada. Estando em Salzburgo, onde a chuva por certo perturbou o que seria a contemplação dos fogos de artifício, aboletei-me às três da tarde num silencioso trem para Viena. Apesar de abarrotado, o ramerrão do vagão parecia o de um dia comum. Fosse no Brasil,  as pessoas ainda estariam desejando feliz ano novo umas às outras, prática que muitas vezes se estende até fevereiro em São Paulo. Na Áustria, não. Consegui uma conexão wi-fi, respondi e-mails, cochilei a partir de Linz e, quando menos esperei, já estava na estação central da capital.    

Se ficar em acomodações AirBnb pode ser muito divertido, a verdade é que em dados momentos os hotéis clássicos fazem falta. Falo desses que têm camareira, garçom, room service para trazer um sorvete de madrugada, e que nos liberam de quaisquer obrigações de ir ao supermercado e muitas vezes comprar no impulso uma enormidade de coisas que ficarão na geladeira, à espera do próximo hóspede. Foi assim que peguei um quarto de hotel em andar alto perto da Catedral, e de minha janela vejo a silhueta da roda gigante do Prater, a quintessência da imagem vienense. Enquanto uma chuva de pedrinhas geladas bate no janelão imaculado, não consigo pensar nos planos que costumava estabelecer para mim mesmo em anos anteriores. 

Isso porque parece que cheguei a um momento de vida em que nada se impõe com tanta eloquência quanto o pragmatismo. Buscar o simples equilíbrio entre saúde, finanças e gestão do tempo já encerra por si só a mais fascinante das equações. O que será que diria Dr. Freud, símbolo desta cidade, o homem que viveu aqui na vizinha Berggasse? Acho que me daria razão. Diz um amigo versado em todas as escolas de terapia existentes que depois de certa idade, o melhor mesmo é parar de fazer maquinações sobre o futuro e releituras sobre o passado porque nem estas nem aquelas podem mais ser de grande serventia. Mais vale enfrentar o cardiologista, fazer os exames chatos que se impõem, cortar o vinho pela metade, rir mais e caminhar depois do jantar. 

De minha parte, para ser totalmente sincero, eu não queria grandes mudanças no plano pessoal. Se puder manter o ritmo de vida que vem sendo o meu há 40 anos, já me dou por bastante satisfeito. Ontem no trem, entre cochilos e sussurros de vozes ao lado, rememorava onde estava em primeiro de janeiro dos anos anteriores. Pela ordem decrescente, revi Tallin, Varsóvia, Helsinque, Tóquio, Istambul, Londres, Dharamsala, Barcelona, Denver...e então dormi de novo. A tradição de começar o ano com o pé na estrada se reveste de enorme simbologia para mim. Significa, antes de tudo, que estou com saúde, solvente com meus compromissos, em dia com as pequenas metas que me alimentam e exultante com o cotidiano. De novo: o que mais posso almejar? 

Mas tudo isso ficou para trás e já não existe. O concreto é que hoje já é dia 2 de janeiro, Viena está a dois graus e as ruas ainda guardam a decoração de Natal. É hora de colocar as pernas em funcionamento e sair para fazer pelo menos mais uma descoberta. Por grande que seja a tentação em reeditar os itinerários conhecidos, impõe-se acrescentar pelo manos uma novidade, ainda que mais não seja visitar uma bela galeria de arte e sentar em um novo restaurante. Ou então entrar num desses charmosos bondes vermelhos e deixar que eles me levem aos limites da cidade, lá onde ela acaba, em algum ponto ao longo do Danúbio. No trajeto, vou repetir para mim mesmo que no próximo ano gostaria de estar com o mesmo estado de espírito nessa mesma data. 

Mais do que isso, não consigo crescer muito. E a reinvenção de mim mesmo só pode se operar por outras vias. Mas essa é outra história.

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Quinta, 21 Novembro 2024

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