A era das aberrações

Muitas vezes penso que a fornada de 1958 a que pertenço foi a última a guardar coletivamente um mínimo do senso comum que se prezava em tempos mais serenos. Falo das pequenas inferências de causa e feito – do tipo "o fogo queima" e a "água molha"–, n...
A era das aberrações

Muitas vezes penso que a fornada de 1958 a que pertenço foi a última a guardar coletivamente um mínimo do senso comum que se prezava em tempos mais serenos. Falo das pequenas inferências de causa e feito – do tipo "o fogo queima" e a "água molha"–, nem sempre óbvias para todos. Mas refiro-me também ao plano maior do discernimento entre o certo e o errado, o feio e o bonito, o bem e o mal. Para além da conclusão autocongratulatória, penso que se dependesse de nossa geração, e de seu composto de mais acertos do que erros, não estaríamos confrontados com opções tão medíocres quanto as que temos hoje. 

Tenho certeza de que o leitor pensará que falo da política e do cenário que se deslinda para o domingo. Em parte, procede. Mas penso aqui numa dimensão mais pedestre da vida, que acontece longe da ribalta da grande agenda. Pois trocando mensagens com Teresa, amiga de décadas, ela me contou que estava saindo com Décio, e essa notícia me entristeceu como nenhuma outra em 2018. Como é que uma mulher tão cheia de predicados, que diz aspirar a uma vida a dois de cumplicidade, engata um relacionamento com um homem tão nauseante quanto aquele, um cara cuja sensaboria se detecta a léguas? 

Rindo de minha reação, ela argumentou que a fatura era salgada, mas nem tanto. Que eu talvez tivesse me deixado levar por uma impressão inacabada, um relance fugaz. E tentou argumentar como pôde. Décio estava aposentado, prezava o companheirismo, era bom pai e compartilhava de seus valores: cuidado com a saúde, contato com a natureza, solidez financeira e sacralidade da família. Fazendo o advogado do diabo, espicacei: minha cara, e como ficam os cacoetes rebarbativos, o ranço, o histrionismo, a deselegância, o tribalismo e a inominável chatice que faz dele um ser intragável para nove entre dez pessoas?   

Em prantos, ela me telefonou para se explicar de viva voz. "O que posso fazer? Armando, que sempre adorei, é casado e nem como amante me quer. Pedro me trocou por uma universitária. Sérgio sumiu quando fiquei doente. Cássio veio com evasivas e, afinal, confessou que era gay e me abraçou dizendo que me queria agora como melhor amiga. Décio é uma aberração? Que seja, não nego. Mas você acha que é fácil viajar só, ir ao cinema só, tirar férias só?" Leigo nessas lides, perguntei porque não tentava achar alguém na internet. Ora, Décio fora tirado da prateleira virtual. Então fiquei sem saber se ria ou se me apiedava de tanta desdita.    

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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