A dimensão terrena dos sonhos
Na quinta-feira compareci a três eventos bem representativos do quão podem ser plurais os gostos, as prioridades e as aspirações de cada um de nós. Em todos os casos, sobressaía o formato de um sonho individual que se realizava e que, à sua maneira, era intransferível para qualquer um dos demais protagonistas. Isso porque cada cabeça e cada coração encerrava um universo de aspirações à parte. Em todos, o resultado colhido espelhava a aplicação dos atores para desfrutar daquele momento. Ao fim do dia, naqueles minutos que antecedem a chegada do sono, pensei com carinho em cada um, mas adormeci antes de saber qual seria o meu próprio sonho.
Comecemos pela manhã. Encontrei logo cedo à saída de uma reunião um conhecido que me puxou pelo braço, o olhar exultante. Certa feita me contara que um tio-avô meio desgarrado da família tinha um quadro da autoria de Jean Cocteau, cheio de rabiscos e escritos, do jeito que ele gostava. Com a morte do parente ano passado, os familiares ficaram à espera de conhecer suas vontades testamentárias. Pois bem, minutos antes de sair de casa, ele recebera uma chamada do advogado dizendo que a obra era sua. O tio-avô lhe legara junto com uma carta carinhosa, dizendo que dar-lhe o quadro sempre fora sua intenção. Ele tinha lágrimas nos olhos.
À tarde, foi a vez de uma amiga assinar a papelada relativa à compra de um apartamento. Ciente de que um longo ano de pesquisa tinha afinal culminado com o que lhe pareceu ser a opção sonhada – quase perfeita, por assim dizer –, foi especial o momento em que a vi assinar o último cheque e colocar a caneta sobre a mesa. Era o fim de um ciclo e o começo de outro. Então, a energia represada na busca e na pesquisa, vicejada na dúvida e nas projeções, explodiu em abraços e lágrimas. Eu, um eterno nômade, um sujeito que das vezes que comprou imóveis se sentiu fora de seu elemento, me vi contagiado por aquele arrobo e também embarquei nas felicitações.
À noite, estava numa livraria para abraçar um amigo que lançava mais um livro. Escritor premiado, nada que não seja literatura o interessa. No café que antecedeu a sessão de autógrafos, recitou à mesa sua profissão de fé. "Eu, Evandro Affonso Ferreira, só tenho compromisso com as letras e não leio jornal há mais de 20 anos. Quem quiser vir falar de Paulo Guedes, ouvirá Cornélio Pena. Quem citar Olavo de Carvalho, ouvirá Lúcio Cardoso. Meu único parente é Kafka, meu irmão é Bruno Schultz e respeito mesmo só tenho por Samuel Rawet. Estamos conversados". E então começou a autografar mais um livro. Segunda-feira, tenho certeza, já começará a escrever o próximo.
Os chineses dizem: "Mesma cama, sonhos diferentes". Seja como for, vale o verso mineiro: "Quem sonhou, só vale se já sonhou demais..."
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