Ensaio sobre o "marido" de Glenn

Sou bem informado, mas ao mesmo tempo, pasmem, não sou. Como saio do Brasil com alguma frequência, termino por perder momentos de fratura, instantes seminais de um novo capítulo de nosso dia a dia político. E, por falta de tempo, tampouco posso me de...
Ensaio sobre o "marido" de Glenn

Sou bem informado, mas ao mesmo tempo, pasmem, não sou. Como saio do Brasil com alguma frequência, termino por perder momentos de fratura, instantes seminais de um novo capítulo de nosso dia a dia político. E, por falta de tempo, tampouco posso me deter na miuçalha do noticiário como fazia antes. Faço uma leitura em diagonal, tiro minhas conclusões básicas e então falo com quem entende de fato do tema para ver se estou na pista certa. No fundo, o que muda com o que eu acho ou deixo de achar? Aos 61 anos, impõe-se seletividade e quando estou no exterior, mergulho de cabeça no que rola no país de destino.  

Para ilustrar o que digo, pincemos por exemplo os episódios relativos a Glenn Greenwald. Pois bem, o que sei é quase nada. Desde o começo da semana, aprendi que é jornalista, americano e que é uma mistura de Snowden e Assange, do Wikilieaks. Ou seja, recebeu de suas fontes uns vazamentos críticos em torno da operação Lava Jato e desnudou um certo cabotinismo de Deltan Dallagnol (ou seria melhor dizer um cabotinismo certo?), que respingou em Sergio Moro, logo que maculou a dupla de paladinos da justiça da carente mitologia de ídolos brasileira. Foi isso? Se não foi exatamente assim, esteve perto. 

É claro que li os diálogos que saíram na imprensa, as trocas de WhatsApp, enfim, toda a parte substantiva da trama. Para quem gosta de escrever, não tem nada mais instrutivo do que ver como as pessoas se expressam numa esfera privada, à margem do jargão empolado que usam nos autos e nas tribunas. Sei que é um pouco de bisbilhotice de minha parte, mas afinal é coisa de domínio público. As piadas, as interjeições, os emojis, as onomatopeias, a linguagem caseira, o escracho, enfim, a banalidade dos mitos é sempre um deleite, para além da decepção. Na literatura, é puro exercício de empatia, de radiografar o humano por trás do institucional.   

Mas então, vamos ao Fla x Flu nacional da questão, onde tudo deságua. Diante do que agora se denomina Vaza Jato (humor nós ainda temos), quem é de oposição ao governo, especialmente quem se diz de esquerda (acha que basta ser bonzinho), adora o Greenwald e o vê como herói. Tanto Fla quanto Flu não vivem sem heróis, disso a gente já sabe. Claro, quem é das hostes do Capitão, e se diz de direita (acha que basta ser raivoso), teme que a perda da aura de Moro desfalque Bolsonaro de seu terceiro mais reluzente ativo (depois de Paulo Guedes e do onipresente Hélio Negão, o deputado). Estes dizem que Glenn merecia ir preso ou ser deportado. Para agravar o histórico nebuloso, frisam que é homossexual e adotou crianças brasileiras ( o que deveria ser um "plus"). 

Onde estou nesse debate? Bem à vontade. É claro que não gosto de ver o esfarelamento da dupla que deu face à Lava Jato. Por outro lado, desde que vi Deltan no Jô Soares, sabia que estava diante de um rapaz que amava os holofotes. E é óbvio que acho abominável que ele queira conjuminar a Procuradoria com uns cobres a mais na poupança e, pelas evidências recentes, com criterioso cálculo político pessoal. A ponto de dizer que o Senado (dizem que lá é melhor do que o céu, imaginem) não lhe interessava porque ganharia menos (será que é por isso que tantos lá fazem a tal "rachadinha", a começar pelo histórico do filho do presidente?) e trabalharia mais (horror dos barnabés). É a lógica dos concursos públicos, não se pode negar.

Seja como for, o que mais temo que aconteça e que sempre apontei como o perigo maior de uma operação tão longa, tão midiática e tão anabolizada pelo heroísmo, parece se concretizar: deslizes, falhas processuais, vazamentos que indiquem uma articulação pouco ortodoxa, eivada de cálculo político e conluio com a TV. Imaginem agora se o que conseguiu o advogado Toron semana passada em favor de Bendine, ex-Petrobras, alastre-se em todas as direções. Já pensaram em ver Sérgio Cabral tomando uma caipirinha no Jobi, no Leblon? Onde iríamos parar? Sei lá. 

Enfim, o STF saberá o que fazer. E mesmo que não saiba, dificilmente teremos apelação – para um lado ou para outro. Isso é o Brasil. Foi assim que uma amiga me lembrou essa semana que o Roda Viva levaria ao ar uma entrevista do Glenn – o querido de uns e o pervertido para outros. Então me servi de um uísque, o que raramente faço em casa, e liguei a TV. Sabendo mais ou menos do que trata o tema, minha atenção se dispersa. Presto atenção aos jornalistas que querem brilhar (não sei o que tem o programa para imbecilizá-los) e ao não-verbal do entrevistado. 

Da essência da fala mesmo, só atento quando percebo que se abriu uma brecha no paredão da lógica. No mais, fico no automático. O Glenn, para quem não conhece – eu o imaginava um americano (ou inglês) de olhos verdes, óculos de tartaruga e jeito de nerd –, é um rapaz que aparenta uns 40 anos e tem expressão de quem dorme pouco. Bem trajado, cabelo com gel, nariz proeminente e o sotaque do rabino Sobel (saudades), achei-o firme e conciso nas respostas, o que me faz concluir que os EUA são mesmo o país do media-training, pois todos são escolados em enfrentar as câmaras, até em outro idioma. 

Tudo ia bem até ele falar uma, duas, três vezes de meu "marido". Sendo ele homossexual, pensei: vá ver que chama o companheiro de "marido", talvez por não saber fazer a distinção entre "husband" e "boy friend". Enfim, soou bizarro, mas até os jornalistas entraram no jogo, o que achei simpático da parte deles, normalmente tão ácidos. Já fui estrangeiro em muitas línguas e sei o quanto é desagradável o sujeito ser corrigido a toda hora. Mas aí fui dar uma olhada nas redes sociais. E percebi que o detalhe não tinha passado despercebido para muita gente. 

 Então entendi que ali também há uma componente gramatical da nova política que impregna todo o Facebook.

É o seguinte: conclui que a intenção era mesmo a de dizer "marido". Se você gostou de ouvir "marido" e viu nisso um gesto libertário, você é do Bem. Sabendo ou não, você abraçou uma causa da esquerda (pobre Marx). Se você achou bizarro e atentatório ao bom senso, senão ao bom gosto, você é reacionário de direita, o que quer dizer que você integra o eixo do Mal (pobre Roberto Campos, digo Bob Fields). Pois bem, e quem não é nem uma coisa nem outra? E  quem achou simplesmente esquisito, um homem chamar o outro de "marido", ele é o quê? 

No Facebook, ou é esquerdopata (para a direita) ou reacionário (para a esquerda).   

"O que serei eu? Logo eu que mostro à esquerda a histeria da direita e desmascaro para a direita o patético da esquerda? Não tenho quaisquer problemas em abraçar novos conceitos e palavras. Adoro fazer isso em muitas línguas e me debruço sobre as peculiaridades das poucas que conheço. Para mim, se ele se refere ao namorado como "marido", ele adianta que na relação deles, ele é a "esposa" ou a "mulher". Ou não? Pelo menos figurativamente. Por que se um chama o outro de "marido", do que é que o tal "marido" chamará o outro? Não é um Ying e Yang? Seria o mesmo que uma mulher chamar a outra de "minha esposa". E se falassem ao mesmo tempo, não seria engraçado? "Definam-se, quem é quem, afinal"?, diríamos com um sorriso.  

Já concluo o simulacro de meu ensaio sobre a perplexidade. Venho de tempos sinistros em que os homossexuais no geral eram discretos, um pouco medrosos, e tentavam ao máximo esconder suas preferências. É claro que tinha um ou outro mais expansivo, mas não era a regra. Na minha Garanhuns natal, tinha um que usava maria-chiquinha e trajava uma vistosa calça rosa, e acho que sofria apupos na rua, como a "Geni" de Chico Buarque. Acho ótimo que isso tenha ficado para trás e que hoje tenhamos homossexuais de bem com a vida, sem traços de feminilidade e até musculosos, plenamente aceitos por si e pelos outros. 

Admitindo que tenha se convencionado aceitar como normalíssimo que um homem chame o outro de "marido", trazendo à vida civil o tratamento carinhoso que lhe dispensa no convívio diário, eu só me pergunto de onde vem (será que vem da cusparada de Jean Wyllys em Bolsonaro?) essa noção de que acatar o conceito é atitude de esquerda, e repudiá-lo é de direita? Eu sou um sujeito à esquerda da direita e à direita da esquerda na economia (berço dessa conceituação). Trabalho com homossexuais e nem me dou conta disso. Só acho patética a rotulação ideológica a partir de uma confusão de linguagem. Mesmo porque conheço gays de direita e homofóbicos de esquerda.

Afinal, o que tem Marx a ver com isso? Que mundo estranho.      

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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