Um começo lastimável

Instalado num pequeno hotel ao lado da estação ferroviária dessa cidade francesa mundialmente famosa pela mostarda gastronômica, o relógio marca 18 horas e, sem precisar olhar a imagem, escuto o discurso de investidura de Donald Trump. Muito pior do ...
Um começo lastimável

Instalado num pequeno hotel ao lado da estação ferroviária dessa cidade francesa mundialmente famosa pela mostarda gastronômica, o relógio marca 18 horas e, sem precisar olhar a imagem, escuto o discurso de investidura de Donald Trump. Muito pior do que eu imaginava que poderia ser, chegam até mim as palavras mesquinhas de quem não tem a mínima noção sequer de que a campanha acabou. Falando para uma audiência de bilhões, não há a menor preocupação com o polimento, muito menos com o zelo protocolar para com as palavras. Quem achava que o cargo poderia operar um mínimo de compostura, está perplexo e convencido de que, se um sujeito desses der certo, significa que a experiência humana nesse começo de milênio está fadada a um grande fracasso. Pois ele parece ser a encarnação da velha piada de que muitos americanos passam da adolescência para senilidade, sem pausa para a maturidade. Digo mais: sequer no meio de vereadores de grotões se vê tanta bravata e estreiteza.

Nesse momento de apreensão e angústia, me vem à mente a figura de Ronald Reagan. Não há sequer a mínima possibilidade de lhes comparar os perfis. O ator vinha de uma trajetória que o credenciava a navegar pelas águas da política. Afinal, fora governador da Califórnia. Ademais, era um comunicador elegante e incisivo, sem ser histriônico. Hábil para fazer as alianças certas, foi, em última instância, o avalista do fim da Guerra Fria. Juntamente com Thatcher e João Paulo II, lançou uma boia de salvação em direção ao leste da Europa e, rompendo o isolamento em que se encontrava Gorbachev, conseguiu seus melhores intentos, quase sempre com um bonito sorriso. Tudo isso pelas vias da inclusão e da diplomacia em dose adequada, apesar de também ter uma visão empobrecida do mundo. Não há, portanto, parâmetro de comparação entre esses dois republicanos, ambos egressos de lides democratas. Reagan reluz quase como um estadista de primeira grandeza quando comparado com um sujeito que não sabe distinguir a Romênia do Afeganistão.      

De resto, aqui na Europa, repercutem pessimamente as manipulações que Trump tenta operar com a defecção inglesa da União Europeia. É inquietante, além de pouco inteligente, que Trump tenha apontado-a como uma armação para servir os interesses da Alemanha – fixando, desde já, quem será seu adversário preferencial no Velho Mundo. Enquanto o presidente chinês rouba a cena em Davos, dando todas as evidências – pelo menos retóricas – de que acredita no  livre comércio e na globalização como um caminho efetivo para a paz, eis que da festa melancólica de Washington emana um discurso de que sequer John Wayne ficaria orgulhoso. Enquanto as Repúblicas Bálticas e a Polônia observam as entrelinhas do que ele considera a obsolescência da OTAN, alguém no Kremlin, apesar de abstêmio, por uma vez na vida nesses últimos anos deve estar fortemente tentado a tomar um drinque porque tem, efetivamente, muito o que comemorar hoje. 

Não, não houve traço de conservadorismo no que foi dito. Isso teria sido de se esperar dos demais candidatos republicanos. O discurso de Trump foi antes de tudo populista e demagógico. Quem quer que tenha redigido essa peça – e não duvido nada de que tenha sido ele próprio, se é que precisou escrever uma ladainha multiuso –, não tem a menor noção das dimensões do cargo que está ocupando. Mais pareceu um elefante solto numa loja de porcelana e não consegui discernir o mínimo de aproveitável. No momento em que termino de redigir esse pequeno post, Obama se encaminha ao helicóptero. Tenho todos os motivos para acreditar que Trump não chega ao fim do mandato, salvo sob tutela forte do Congresso. Bem nos moldes de um caudilho ensandecido de uma república bananeira de meados do século passado. Imagino o "frisson" e o desconforto dos inúmeros estamentos de excelência desse grande país. Imagino a perplexidade de todos os ex-presidentes lá presentes. Foi uma péssima sexta-feira. Será que um filé ao molho de mostarda e um garrafa de Borgonha consolarão? Não creio.    

Hoje, perdemos todos unanimemente.

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Domingo, 15 Dezembro 2024

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