Amor com a Rússia
Muitos de nós amamos a Rússia. As razões desse afeto são difusas. É difícil explicá-las. Gostamos da França por ser uma amiga da humanidade, a segunda pátria de todo mundo. Da Itália, pelo olhar artístico dos locais. Da Inglaterra, pelo universalismo da língua. Da Argentina porque Buenos Aires é um templo de prazeres. Do Japão, pelas cerejeiras. E da Rússia? Ora, a Rússia não é o país da benevolência ou da livre expressão. Moscou não irradia códigos culturais de fácil assimilação. Gigantesco e opressivo, o país tem por certo muitas belezas. Mas a forma como elas se compõem é complexa - como a tundra e a taiga. Em suma, sempre haverá uma razão forte para amá-la.
Uns têm um eterno reconhecimento pelo seu papel na Segunda Guerra. Começamos a derrotar o Nazismo quando os russos resistiram em Stalingrado. Siderados pela narrativa de salvar a Pátria-Mãe, morreram como moscas. Stálin não poupou-os quando podia. Conheci a casa da infância de Stalin. Filho de um sapateiro e ele próprio, um corista da igreja em Gori, no Cáucaso, morreu sob o olhar sádico do também georgiano Beria e de Malenkov. Estrebuchou no chão da "datcha" de Kuntsevo com um AVC, ilhado numa poça de urina fria, enquanto o médico arrancava, trêmulo, a dentadura para não sufocá-lo. Na hora derradeira, não deve ter conhecido um segundo de remorso.
Isso pode fascinar, é cinematográfico, dá para fabular. Igual ao assassinato de Rasputin. Mas é provável que nosso amor pela Rússia venha de Tchaikovsky, cujo arrebatamento nos faz levitar no Nevsky Prospect. Ou por Dostoievski. Dia desses, Alexei Navalny morreu numa dessas prisões siberianas que, há 30 anos, todos nós achávamos que iriam virar museus, na esteira da glasnost de Gorbachev. Qual nada. Morto em Kharp, no Ártico, petrificado a -30º, deve tê-lo confortado saber que agora está livre do verão, quando mosquitos do tamanho de uma bola de gude chupam o sangue de um alce num minuto, reduzindo-o a uma bolsa de couro de ossos.
Navalny cometeu uma besteira descomunal ao voltar para a Rússia. De megafone em punho em Moscou, apaixonou-se pela própria lenda. Fazia piada à beira do precipício, como se imolar-se fosse a única forma de brigar. Muito russo isso! Chegando ao inferno prisional, quando muitos já o julgávamos morto, ele escreveu: "Bem, agora tenho um casaco de pele de carneiro, um ushanka (chapéu de pele com abas que cobrem as orelhas) e em breve terei um valenki (calçado tradicional de inverno)…" Quem lesse isso pensaria que chegara para passar férias no Baikal. Na ligeireza fingida, era psicógrafo de si mesmo. Vivia para o fim e mitificava a posteridade!
As denúncias incomodavam Moscou. E era debochado. Brincou com o juiz e com a mãe de trás das grades. Fiquei com raiva de Navalny. Se um dia ele governasse a Rússia, talvez fosse um desses políticos que logo perdem a credibilidade, que se descredenciam para o jogo na largada. Mas o que contava era a vida de quem ainda não chegara aos 50 anos e que tinha tudo para mostrar ao mundo – sistematicamente – as entranhas de uma máquina de moer. Agora é tarde.
O texto foi originalmente publicada na edição 346 de AMANHÃ. Acesse a íntegra da revista clicando aqui (mediante pequeno cadastro).
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