Maio de 68 em Paris
Quase à mesma época que os estudantes tomaram de assalto as ruas do Quartier Latin parisiense, ali na altura do Odéon, eu só tinha 10 anos e, sem me dar conta, presenciaria de modo fugidio, mas perfeitamente audível, a ruidosa Marcha dos Cem Mil no Rio de Janeiro, que aconteceu quando eu e minha família almoçávamos com uma prima numa galeria não longe da Cinelândia carioca. Conforme viria a saber mais tarde, aquele ano – o tal que nunca acabou, no dizer do escritor Zuenir Ventura, no título de sua obra mais marcante –, movimentos de insubordinação da juventude sacudiam os Estados Unidos e outras praças europeias, o que embalou boa parte dos anos 1970, quando eu começaria a me entender por gente para valer. De qualquer forma, fosse pelo cenário idílico, pelo carisma dos protagonistas ou pelo elevado grau de abstração das reivindicações em pauta, nem mesmo a Primavera de Praga se igualou ao mítico Maio de 68 francês. E é sobre ele que gostaria de falar na semana de seu propalado cinquentenário. Mas como, se só chegaria a Paris cinco anos mais tarde?
Ora, cinco anos e nada são quase a mesma coisa. Especialmente se a memória afetiva foi se impregnando daquelas imagens em preto e branco, mostrando lindas mulheres amoitadas por trás das barricadas, jovens que discursavam inflamados, heróis de Guerra acuados e slogans que falavam sobre a proibição de proibir e valiam-se de pura poesia lançada ao vento, como era o caso de "Sous les pavés, la plage", uma alusão a que sob os paralelepípedos, havia uma imensa cama de areia de praia, a acenar com uma promessa de paraíso, desde que eles os arrancassem com as mãos nuas e caminhassem sobre o chão cru. E era o que faziam. Assim sendo, quando aportei aos mesmos cenários no verão de 1973 e meu primo me conduziu por aquele bairro mítico, narrando com fervor os fatos que mudaram a feição do mundo, senti-me pela primeira vez um agente de transmissão da História e pensei que talvez um dia viesse a ter sobre o que contar. Se o encadeamento dos fatos é conhecido, resta-me inventariar o que resultou na atitude parisiense daqueles dias de euforia contestatória.
Pois bem, quando lá cheguei os filmes do momento eram "O sopro no coração" e "O último tango em Paris". Fui ver ambos acompanhado de mulheres mais velhas e, não sei se posso atribuir isso aos ventos libertários, o fato é que ambos foram muito inspiradores para que com elas mesmas desse vazão a uma libido nascente que, no cenário parisiense, eternizou-se na memória como reminiscências prazerosas. Se no Brasil minha pouca idade poderia dificultar o acesso às meninas emancipadas –, mesmo tendo estas 20 anos –, na França isso não era problema. Devo creditar o bônus à "crise de civilização" de que falou Merleau-Ponty? Não sei, mas me entreguei a essas mulheres aos brados de "Vive la Liberté". Outro dividendo torto que remanesceu foi a naturalidade com que passei a sentar em cafés para ler, ver a paisagem e escrever cartas. Aquele simples gesto de soberania falava fundo a meu coração. Fiquei aliviado quando li que a mesma sensação acometeu o amigo pintor Zé Claudio ao ser servido de uma Coca-Cola nos primórdios de seus dias no Recife. O rito singelo fez com que se sentisse devidamente batizado.
Por fim, um traço da cidade com que meu incipiente anarquismo parecia comungar com naturalidade era com o asco que inspiravam as instituições governamentais. Parecia mesmo imperar um clivagem entre os mandatários e os governados, aos últimos cabendo de tudo fazer para mostrar por A+B que nada nem ninguém lhes imporia limites. Assim, apesar dos cartazes que diziam o contrário, afixavam-se panfletos e anúncios nas paredes. Ignorando as plaquinhas que proibiam pisar na grama, era lá que as pessoas queriam jogar bola. Os estudantes sentavam nas cadeiras verdes do Jardim do Luxemburgo e quando a cobradora chegava, levantavam-se e iam embora. Pular catracas de metrô era uma brincadeira que poderia trazer consequências dolorosas ao bolso e nesse terreno numa me aventurei, mesmo porque não me parecia realmente revolucionário. Por outro lado, telefonar para o Brasil a partir de um aparelho avariado na estação de Sèvres-Babylone nada tinha de errado, pelo contrário. Torcer pela falência do Estado e contribuir para tal parecia ser nosso dever geracional.
Mas a rebeldia vivaldina também se aplicava ao setor privado, o que algumas vezes se me afigurou um grande despropósito. Ora, quem vivera lá naqueles dias disruptivos, e aqui não declinarei os nomes das pessoas conhecidas que me ocorrem, assimilou uma noção de que o mundo patronal era execrável e que os funcionários tinham mais era que assumir uma atitude de sabotagem vis-à-vis quem os explorava. Lembro da vez que entrei numa livraria com uma amiga brasileira mais velha e ela simplesmente pegou um livro na prateleira e escamoteou-o na bolsa. Tive a nítida impressão de que o funcionário vira o ocorrido e parecera sorrir. Na saída, ela me confirmou: "É claro que ele viu. Mas o prejuízo não será dele, será do patron, entende? E depois, para que quero o livro? Para estudar e ajudar a fazer a revolução, não é mesmo? Logo eu roubo por ele, para libertar o oprimido, sacou?" Desses dias trago a convicção de que a esquerda que então se amotinava na Rua Maria Antônia, em São Paulo, tendo José Dirceu à frente, consagraria o mesmo argumento cínico. Estes são sim filhos de Maio de 1968.
Foi isto. Embora tenha vivido os ecos do ano fatídico com cinco anos de atraso, certo é que Paris continuou a ser a festa a que aludiu Ernest Hemingway em "A moveable feast". Mas como dei meus primeiros passos na cidade levado por filhos de 68, e no cenário mesmo do qual os estudantes arrancaram os tais paralelepípedos para achar a areia das praias, Paris estará sempre associada a esse momento seminal de sua longa História. A minha, infinitamente mais curta, entesourará o bulício de uma farra cujos acordes reverberaram no adolescente que fui e, de certa forma, jamais deixarei de ser.
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