Armas na pandemia, batons na guerra
Daria até uma charada: o que vinhos, livros e armas têm em comum?
São todos itens tidos como "essenciais", segundo a definição de alguns países. Foi com base nessa justificativa, afinal, que estabelecimentos de queijos, vinhos e chocolates, na França; livros, na Alemanha; drinques, na Austrália; e armas, em determinados estados americanos, tiveram autorização para continuar funcionando durante a pandemia (Veja, 06/05/2020).
O que essa discrepância nos revela? A de que o conceito de essencial é, de fato, "fluido", como afirmou a Secretaria-Geral da Presidência brasileira quando, em junho, Jair Bolsonaro autorizou a reabertura de academias de ginástica e salões de beleza. E que assim como os estabelecimentos beneficiados pela medida presidencial poderiam se prestar a promover "a saúde física e mental da população", conforme defendia a pasta à época (Folha de S. Paulo, 26/06/20), outros tantos produtos ou prestadores de serviço poderiam reivindicar o mesmo – tanto que o fizeram. Um representante da Amazon na Europa justificou a manutenção da venda e da entrega de videogames durante a pandemia ao defini-los como fundamentais para manter ocupadas as crianças confinadas (Le Monde Diplomatique, abril de 2020).
Cinismo? Sem dúvida. Mas não sem um quê de verdade. Acompanhe:
1. No início do século passado, a Ford, criadora do primeiro automóvel comercial de larga escala, recebia cartas de famílias agradecidas pela invenção do veículo: "Preferimos ficar sem roupas novas a abrir mão do carro", teria escrito uma mãe de nove filhos em 1920. Outra ia mais longe: "Prefiro deixar de comer a abrir mão do carro" ("Ford: o homem que transformou o consumo e inventou a era moderna", de Richard Snow, Ed. Saraiva, 2015).
2. Na Segunda Guerra, Churchill exigiu que as fábricas inglesas de maquiagem continuassem produzindo batons para abastecer os exércitos femininos nos campos de batalha: "a beleza é seu dever", dizia a campanha publicitária. Ao fim do mesmo conflito, prisioneiras de um campo de concentração alemão receberam da Cruz Vermelha, no momento do resgate, batons – numa bem-vinda forma de devolver-lhes a humanidade, conforme relatou um deslumbrado militar inglês (leia aqui).
3. "Num país asiático, durante uma campanha de controle de natalidade, os camponeses mais pobres que aceitassem passar por uma vasectomia poderiam escolher entre dois prêmios: um saco de arroz ou um radinho de pilhas. Quase todos escolheram o radinho, apesar da fome" (Contardo Calligaris, Folha de S. Paulo, 03/07/2015).
4. Na cidade do interior do Piauí em que lançaram o Fome Zero, lá pelos idos de 2003, "fizeram uma pesquisa sobre outras coisas que a população deseja. Deu dois resultados: uma estação de rádio e um salão de beleza" (Roberto Duailibi, publicitário, na Revista da ESPM março-abril 2007).
Resumo da história: essencial é, sim, um conceito fluido. E, por isso mesmo, presta-se a diferentes interpretações em lugares diferentes, o que ajuda a legitimar idiossincrasias pessoais e grupos de pressão que colocam as suas demandas no início da fila de prioridades nacionais, sejam elas tributárias ou de abertura num lockdown, por exemplo. Mas e para o marketing, o que isso significa? Uma tremenda oportunidade, como se verá no próximo post.
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