Zonas cinzentas

Nunca senti tanta falta do Brasil. E nunca senti tanto alívio por estar longe dele. Estranho sentimento
Hoje é quarta-feira e Paris está radiante de sol e cores. É a isso que preciso me expor. Afinal, sol é vitamina D

De Paris (França)

Não me queixo, estou vivo. Outros muito mais valiosos do que eu já morreram nessa pandemia. É claro, minha vez pode chegar a qualquer momento – pelo coronavírus ou por outro meio transmissor, mesmo porque diversos caminhos levam à morte. Estou há 75 dias em Paris, vivendo da boa vontade de amigos numa casa desocupada. Lá pelo fim de março, quando fiz 62 anos, lembro de uma noite lúgubre, de muito frio e vento. O número de óbitos não parava de subir e a cidade era só tristeza e desolação. Nas muitas horas que ainda passo em casa – mesmo porque as ruas estão cheias de ameaças tão graves quanto as de antes, como ciclistas e skatistas –, fico me perguntando se um dia verei o Brasil de novo. A São Paulo onde moro há 40 anos, e o Recife onde acordei para o mundo, e onde tenho várias famílias. Se jamais pude ter uma resposta taxativa para isso, agora muito menos. Nunca senti tanta falta do Brasil. E nunca senti tanto alívio por estar longe dele. Estranho sentimento.

Dia desses chutei que se não fosse abatido no ar, atravessaria o Atlântico lá pelo final de julho, começo de agosto. Disseram-me que por hipótese alguma. Que nessa data, o Brasil ainda pode estar em seu auge, dramaticamente encastelado na vice-liderança mundial de mortes, e que, trancado numa cápsula de alumínio e espuma nas alturas, eu teria tudo para chegar a Guarulhos espirrando e febril. Quando o médico batesse o olho em mim, nem perderia tempo em me alocar horas de respirador. Como ignorar hipótese tão sinistra? A que sorte pode aspirar um homem que é gordo e asmático? Juro que não tiro a razão dele. Seja como for, espero não viver esse momento insólito. E entrementes, conjecturo sobre minha sorte. Na França, pensando bem, não tenho mais onde ficar. Ir para hotéis e afins é uma temeridade, pois são viveiros de gente em quarentena. À montanha, não posso ir. Venho de zona vermelha, logo contaminada. Sairão novas regras? Parece que sim, esperemos por elas.

Tenho amigos em alguns países europeus que poderiam providenciar um apartamento bom para atravessar a canícula do verão. Mas a prudência manda que seja país com o qual se tenha fronteira seca. Mesmo assim, ninguém sabe me dizer se a Alemanha ou a Suíça me aceitariam. E, demais, se a França me permitiria a volta, mesmo porque minha situação legal na Europa expira esta semana. Pela primeira vez em 47 anos, estarei ilegal aqui – o que não chega a ser nenhum tormento. Se tivesse que ser repatriado, pediria asilo sanitário. Eis, portanto, um enorme abismo onde assoma, colossal, a incerteza. Com as minhas dúvidas pessoais, eu ainda lido. As que mais me desesperam são aquelas ligadas à burocracia. O insuportável não chega a ser morrer, experiência inédita. Dizem até que só é problema para quem fica. Terrível é aguentar um euro-burocrata perdido, que não sabe se o mande para a delegacia ou para o necrotério. Hoje é quarta-feira e Paris está radiante de sol e cores. É a isso que preciso me expor. Afinal, sol é vitamina D. Au revoir.

Veja mais notícias sobre ComportamentoCoronavírus.

Veja também:

 

Comentários: 2

Milton Pomar em Sexta, 29 Mai 2020 12:40

Se serve de consolo, Fernando Dourado, você não está sozinho em seu dilema de tempo e espaço. E, pode ter certeza, vir para o Brasil nesse momento, e nos próximos dois meses, não será a melhor opção. Segundo as projeções otimistas dos pesquisadores, junho e julho prometem ser mais assustadores, em quantidades de contaminados e vítimas fatais. Por último, infelizmente os números oficiais são muito menores do que a realidade. Saudações solidárias da Terra do Frio e do Vento Súli.

Se serve de consolo, Fernando Dourado, você não está sozinho em seu dilema de tempo e espaço. E, pode ter certeza, vir para o Brasil nesse momento, e nos próximos dois meses, não será a melhor opção. Segundo as projeções otimistas dos pesquisadores, junho e julho prometem ser mais assustadores, em quantidades de contaminados e vítimas fatais. Por último, infelizmente os números oficiais são muito menores do que a realidade. Saudações solidárias da Terra do Frio e do Vento Súli.
Enio Gomes de Lima em Quinta, 04 Junho 2020 18:09

Como se a Covid não estivesse presente na França e Europa. Você seria apenas um peso a mais. Fique aí, por favor.

Como se a Covid não estivesse presente na França e Europa. Você seria apenas um peso a mais. Fique aí, por favor.
Visitante
Quinta, 21 Novembro 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br/