Um adversário difícil

No salão da Lufthansa do imenso aeroporto da Baviera, acompanho com o canto do olho uma família brasileira que como eu, espera um voo de conexão. Ao pai, coitado, um homem de 40 anos, que lhe seja feita justiça. Tentando passar ao largo da indiferenç...
Um adversário difícil

No salão da Lufthansa do imenso aeroporto da Baviera, acompanho com o canto do olho uma família brasileira que como eu, espera um voo de conexão. Ao pai, coitado, um homem de 40 anos, que lhe seja feita justiça. Tentando passar ao largo da indiferença que inspira aos familiares, estava a toda hora convocando a esposa para dar um passeio no saguão: "Vamos ver se a gente acha o relógio que você quer dar para o seu pai, meu bem". Sem sequer levantar a vista transfixada no celular, ela mal disfarça o enfado que lhe inspira a proposta e rebate: "Vá você, você escolhe melhor do que eu. Preciso descansar". Ele não desiste: "Mas entre dois voos longos, é bom esticar as pernas, já estamos há quase duas horas aqui". Esforço vão. 

O mesmo ele faz com os dois filhos. O mais velho parece estar entretido num jogo viciante e não largaria o tablet nem que a vida da família dependesse disso: "Não enche, pai". Mas, de novo, ele persevera: "Dá só uma olhadinha na televisão, filho. Vê que imagem impressionante a do vulcão. Já viu como nasce um tsunami sem terremoto?" O filho mais novo se irrita de vez: "Você parece que não tem outro assunto, pai. Saco! Já é a terceira vez que fala nesse vulcão". Resignado, ele assente: "Desculpa, filhão, o pai deve estar ficando gagá". E assim ele fica com a cara mexendo, meio desarvorado. Não pode contar com a esposa para lhe acompanhar num drinque no bar nem com os filhos para ver a linda árvore de Natal do térreo. 

Então, parece que o espírito natalino tomou conta de mim. Como estava mesmo precisando caminhar antes de embarcar, disse num impulso: "Vou até uma loja para comprar um agasalho, já que esqueci o meu. Podemos descer juntos, vou deixar a bagagem aqui". Ele me olhou perplexo. Parecia se perguntar se acaso me conhecia de algum lugar. Os filhos e a esposa também levantaram os olhos, intrigados. "Não me leve a mal, é que vi que está sem companhia". E então, ousei: "Hoje eu não sei mais o que é isso, mas já soube o que é pagar por quatro e desfrutar por um. E olhe que naquela época o celular estava só aparecendo". Pedindo autorização tácita à esposa, ela levantou os ombros como quem dizia: pode ir, a decisão é sua.     

Na conversa que se seguiu, na meia hora em que passeamos nas lojas, ele se apresentou. Era advogado, paulista, o menino mais velho era seu enteado e o caçula era do casal. Estavam a caminho de Firenze, onde passariam o Ano Novo com a família da esposa. Disse que tinha casa em Ilhabela, mas que nem lá conseguia mais atrair a atenção dos três. "É difícil, eu também sou meio viciado nessas geringonças, mas parece que isso está passando de todos os limites. Ninguém é suficientemente interessante para rivalizar com o entretenimento digital. Não é que eles sejam más pessoas, são só filhos da geração a que pertencem, não é isso?" Tomamos o elevador e voltamos ao lounge. Na despedida, Ele remexeu o bolso do blazer: "Fica com meu cartão. E obrigado pela companhia". 

Estava feita em definitivo minha boa ação de Natal.

Veja mais notícias sobre Comportamento.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Sábado, 04 Mai 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br/