Sem destino
De Paris (França)
Não sou de âncoras. Nunca fui. Sempre tive de mim mesmo a imagem de um navio que sai de cais em cais. Por que não a de um avião? Porque a imagem do avião é ligada à rapidez, ao pouco tempo em trânsito, por longo que seja o voo. Para o transatlântico ou o cargueiro, por outro lado, qualquer cabotagem leva alguns dias, entre a atracagem e a partida. Admitindo, contudo, que os portos fiquem fechados, o que será da embarcação? Por quanto tempo pode ela ficar à deriva, ao lamarão, à espera de um convite para vir à doca? Afinal, ela precisa se abastecer de combustível, fazer uma manutenção no casco - sob pena de ficar muito lenta ao cortar a lâmina da água -, e encher os porões de água potável e comida liofilizada para uma emergência. Ademais de propiciar, durante a escala, uma bem-vinda pausa à tripulação, que logo reaprende a andar em terra, depois de sacolejar e se equilibrar nos corrimões em mar aberto. Pergunto: e eu, que sou essa embarcação à deriva, para onde vou?
Arranchado em Paris, onde a quarentena me pegou, e certo de que aqui estou mais em segurança do que no Brasil, sob o ponto de vista da saúde, é cedo para me fazer certas perguntas. Mas uma hora se imporá saber o que vou fazer. Admitindo-se que eu esteja liberado para sair de casa em 11 de maio, como está estabelecido até o momento, convém rumar para São Paulo de imediato? Ou para o Recife, onde está a maioria de meus familiares? Lá chegando, aliás, quem eu poderia ver? Em tese, ninguém. De mais a mais, quem garante que a estrutura hospitalar de ambas as cidades não esteja congestionada? E se me aventurasse pelo interior? O sensato seria, pois, ficar na Europa, mesmo que extrapole o prazo de permanência legal. Pensar numa questão legal a essa altura é um preciosismo que não se aplica à guerra. Por legalismo, não vou entregar minha vida de bandeja.
Mesmo ficando aqui, contudo, para além das intrincadas equações de manutenção, orçamentário e motivacional, há de se levar em conta que os horizontes são extremamente nebulosos quanto à vacina, quanto a um mínimo de segurança de que disso não morreremos. Diz o dr. Drauzio: "Eu, sinceramente, já fui otimista, sabe? Acho que no início todos nós fomos, o mundo foi otimista. E eu participei desse otimismo e me recrimino por isso hoje. Porque nós recebíamos as notícias da China e essas notícias eram muito ocasionais, e não davam ideia de como eram realmente a epidemia (...) Eu acho que nós vamos ter um número muito grande de mortes. (...) Você vê que até hoje a gente não conseguiu definir a partir de quanto tempo nós podemos relaxar. Quanto tempo? Dois meses? Três meses? Seis meses? Ninguém sabe." Hoje mesmo os franceses travaram longo e incerto debate sobre os rumos da imunização coletiva e sobre as recaídas em pacientes que tinham tido alta.
E eu, onde vou aportar por essas águas? Do que vou viver, se ainda preciso de meu trabalho para me manter? Em que dos novos paradigmas que se vislumbram para o futuro eu me encaixo, aos 62 anos? Preciso dar um "upgrade" em minhas habilidades digitais para assegurar a navegação do barco? Certamente. Dar a primeira aula no aplicativo Zoom certamente ainda foi muito pouco, embora a experiência tenha agradado. As vendas online doravante vão crescer enormemente. O que posso fazer? Colocar meus livros em nuvens e redes? E o que será de mim com o fim das longas viagens internacionais, que sempre estiveram na base de minhas missões? E o que dizer do "localismo" em detrimento do "globalismo", este que foi meu evangelho de uma vida inteira? E que prazeres eu posso tirar de um mundo onde as pessoas se apresentam às outras de máscara e à distância? Ganhar dinheiro para gastar com quê e com quem?
Vou continuar à deriva. De olho na costa, talvez um dia ache um remanso onde a atracação seja menos conturbada. Por enquanto, fico ao lamarão. Como aqueles navios que via ao longe no porto do Recife, que ficavam à espera da hora certa. Mas, decididamente, não são questões banais.
Veja mais notícias sobre ComportamentoCoronavírus.
Comentários: