Sabor da África
Uma breve escala em Sal (foto), Cabo Verde, acendeu em mim a centelha discreta da nostalgia pela África. Longe de conhecê-la tão bem quanto os demais continentes, vivi o bastante para visitar 22 países e, apesar das precariedades da maioria deles, para manter vivas muito boas lembranças do Quênia, Tanzânia, Senegal, Costa do Marfim, embora outras não muito agradáveis de Angola e da Nigéria, país este que integra a diminuta lista dos lugares onde não faria questão de voltar. Quando digo África, bem entendido, excluo os países islâmicos do Norte – Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito –, e a África do Sul, por entender que integra um bloco civilizacional à parte.
Mas voltemos a Cabo Verde. O que vi ali num par de horas que me deu saudades das paisagens urbanas e rurais do Continente? Pois bem, foram as pessoas. Isso porque o que mais temos na África subsaariana é uma gente cujas características de comportamento traduzem a transição de um estágio típico do subdesenvolvimento rumo a uma sociedade que, pelos imperativos do mundo, precisa se modernizar. Da fricção entre o passado e o presente (já nem falo de um futuro, que permanece invisível para a maioria), assoma um universo de observação frequentemente muito rico e não rara vez anedótico, segundo o ponto de vista do observador.
Na falta de espaço para cobrirmos tudo, eu enfocaria em primeiro lugar o que o pensador holandês Geert Hofstede chamou de "distância de poder." Como sabemos, ela é indicativa do fosso hierárquico que separa os diferentes níveis. Se na Dinamarca ela é mínima, e o congressista e o varredor de ruas tomam uma cerveja lado a lado num balcão, na África isso é impensável. Os poderosos mantêm grande distância daqueles que estão em degrau mais desfavorecido da sociedade com relação a eles e, tal como no mundo árabe, os chefes são tidos por pessoas ungidas de certa divindade por terem chegado a um elevado nível de projeção, logo de respeitabilidade, quase veneração.
Em linha com o acima, a África atribui status aos mais velhos – como nas zonas rurais da China. É parte da tradição das aldeias uma reunião sob uma grande árvore onde essa pessoa sábia conte histórias e entretenha a audiência com episódios que dizem respeito à identidade comunitária. Daí que o africano em geral gosta de conversar, de gesticular, de dramatizar e de sorrir. Em culturas assim, é evidente que os padrões universalistas de aplicação de justiça igual para todos não funciona. Embora constatem-se evoluções, como no Brasil, há de se admitir que, a depender do infrator, o braço da justiça ainda pode ser lento e ineficaz.
Tudo isso combinado gera um caldo de cultura divertido quando observado de perto. No aeroporto de Sal, quem tem um colete fosforescente, um walkie talkie e um crachá funcional, vê-se em posição de tudo poder. Na falta de um treinamento que enfoque subjetividades – não seria a África, se assim existisse –, as demarcações são rígidas e patéticas. No afã de manter o emprego, eles podem se mostrar excessivamente zelosos do cumprimento de seus deveres, o que os leva a tratar os passageiros como crianças e como tal a, ocasionalmente, repreendê-los. Hiperativos, muitos não sabem valer-se do microfone e correm pelo saguão como se fossem tirar o pai da forca.
Foi pensando em tudo isso que decidi localizar na biblioteca o livro "Ébano", do polonês Ryszard Kapuscinski, um hino de amor a este Continente tão sofrido, belo e fascinante.
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