Recordações de um calor insuportável
Não tenho sorte com os dias de calor. Nos anos 1990, entrei numa lojinha de Lisboa. Era agosto, o calor parecia vir do deserto, a morte assomava como uma alternativa simpática. Aturdido, lembro de que gostei da gravata da vitrine e quis comprá-la nem que fosse para me iludir de que estava vivo. "Não quer uma camisa?", disse-me uma voz logo atrás do caixa. O vendedor era loquaz. Tinha 1,60m, cabelo preto pesado e os ares de quem estaria a gosto se governasse o mundo. "Não, não, obrigado. Para mim, camisa só sob medida. A numeração normal dificilmente me serve. Faço as minhas em Hong Kong, dez de cada vez." Mas ele não se deu por rendido.
"Prove esta aqui." Rebati: "Quando não ficam ruins no colarinho, sobram nos punhos." A teimosia do cara me contagiou. Se provasse, ganharia mais uns minutos no ar refrigerado. Entrei na cabine. Dito e feito. Punhos ok, mas o colarinho muito baixo. Aliviado, sai para que ele visse. "Tá vendo? Não falei?" Ele rebateu. "Está muito giro, está perfeita pá, é o número certo". Sorri da insistência, mas ele voltou à carga: "Se quer saber(e), esta é vossa medida. É a ideal, já que não tem pescoço".
Meu mundo rodopiou. Seria o calor? Sem dúvida. "Como é, meu amigo? Não tenho pescoço? Será que ouvi bem?" Ele não se abalou. "Ora, ora, não me diga que não sabia. Como não tem pescoço, convém usar colarinho frouxinho e baixinho. Assim, pensarão que tem pescoço, quando, na verdade, já não o tem mais, se é que teve um dia". Furioso, mandei embrulhar a gravata e ainda ouvi-o resmungar. "Ora, já não se pode dizer as verdades" Passei meses andando de pescoço espichado como girafa, imitando meu conterrâneo Marco Maciel. Contei a história a mamãe, que adorou o vendedor. "É desse tipo de amigos que você precisa. Um homem desse vale ouro, vamos ver se você desperta." Queria só uma gravata, mas ganhei um complexo. Foi pedagógico. Coisas do verão, coisas de Portugal.
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