Outra tribo

Trabalhar em cafés e lá marcar suas reuniões é uma tônica dos tempos que vivemos. Em São Paulo, vejo frequentemente aulas de língua estrangeira reunirem professor e aluno, e já aconteceu de ver sessões de coaching e terapia, sejam elas presenciais ou...
Outra tribo

Trabalhar em cafés e lá marcar suas reuniões é uma tônica dos tempos que vivemos. Em São Paulo, vejo frequentemente aulas de língua estrangeira reunirem professor e aluno, e já aconteceu de ver sessões de coaching e terapia, sejam elas presenciais ou por Skype. Pensar que até poucos anos alguns empreendedores concebiam um cybercafé como um empreendimento inovador, com muitos anos de vida pela frente, se revelou acertado por um lado e enganoso por outro. Na prática, todos os espaços de convívio são cybercafés, quando não de coworking. O "plus" não era atrativo optativo, senão um elemento compulsório nos dias de hoje.  

Não sou exceção à regra. Não é raro que passe horas num café dos Jardins ou mesmo aqui em Boa Viagem, no Recife, onde está minha confeitaria preferida. É claro que em tais espaços exíguos, basta querer para que as conversas da mesa vizinha cheguem até nós. Na maior parte do tempo, em respeito à sua própria missão, você desliga, por mais alto que as pessoas falem. Mesmo porque você está lá para trabalhar e não para se distrair com a cacofonia ao redor. Mas ocorre de isso se tornar inevitável. Especialmente quando você está cercado de mulheres de decisão, dessas que fazem da ênfase e da veemência a própria imagem de marca da vitória. 

Na verdade, trabalho com mulheres desde os anos 1980, o que me dá o recuo necessário para acompanhar como se operaram certas mudanças. Naquela época, é forçoso admitir, salvo pelas americanas de Nova York com quem tive negócios, as demais pareciam se esforçar para fazer um discurso de acomodação aos desígnios masculinos. Relegadas a áreas de apoio – treinamento ou RH –, quase não se viam mulheres nas áreas de engenharia a meu redor e, até no campo do Direito, mais da metade das advogadas em exercício pareciam abraçar as causas trabalhistas ou de família, como se seu senso de temperança ajudasse a equilibrar correlações desiguais num mundo de força. 

Um dia, em São Paulo, num restaurante já extinto, escutei a conversa de três moças de seus 30 anos na mesa ao lado. Tomando drinques vigorosos, ali não se falou uma só vez de marido, namorado, filho e/ou pais. Logo concluí que trabalhavam em agressivos bancos de investimento e que estavam colocando de pé uma operação até bastante conhecida numa época em que pululavam os MBO´s e LBO´s – as chamadas operações alavancadas. Sim, havia ali um tom discernível que não se parecia a nada do que até então escutara. Se fosse uma conversa transcrita, e não fossem pelos femininos das falas, poderia ser um animado tiroteio verbal de homens.  

Mas vamos dar um salto no tempo. Sendo hoje sexta-feira e tendo de compactar a agenda, marquei vários compromissos numa padaria de Boa Viagem. As vizinhas do primeiro horário eram organizadoras de eventos. Estavam se vendo pela primeira vez e não houve sequer um toque de subjetividade ou de personalização do contato. Foram direto ao ponto, falaram educadamente, mas não hesitaram em usar duas ou três palavras chulas. Depois veio um trio também feminino cujo desafio era propagar um site de "coaching" para crianças. Sim, sim, para crianças. Mas isso não teria outro nome, pensei em perguntar. Pensei, mas não ousei. Ríspidas, secas, impessoais, lembrei dos homens dos anos 1980 em conversas em Wall Street.

Por aqui fico. Lá vejo apontar à porta meu interlocutor. Dez anos mais velho do que eu, posso garantir que é uma doce pessoa. E nossa conversa, contrariamente à das meninas, vai ter de primar pelo velho roteiro de família, afetos, preocupações, saúde, angústias, para só então desaguar nos negócios, lá mais adiante. Outros tempos, outras tribos. 

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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