O direito sagrado a ter alguma tristeza
Eu sou assim: os momentos divertidos, eu compartilho. Os almoços, os vinhos, as boas conversas, o lado lúdico da vida. Gosto disso. Fiquei irritado quando uma menina que eu julgava uma pessoa legal me escreveu para dizer que eu era um tanto esnobe, que queria dar pinta de ser gente de elite. Tudo por causa de uns pratinhos de R$ 72 e de um vinhozinho básico. É muita mesquinhez. E isso porque se declarava uma fã dos meus escritos. Imaginem se não fosse! Mas isso são só 10% da vida real que, felizmente, se tornam 20% porque invadem a agenda, gratificam a alma e inspiram alguns de vocês, leitores deste Blog em AMANHÃ e também do meu perfil nas redes sociais, notadamente o Facebook onde originalmente escrevi este texto.
Por outro lado, compartilho também os momentos chatos, que estão, ultimamente, quase sempre ligados às preocupações com a saúde. Eles são 20% das iniciativas e se propagam por 30% do espaço da vida porque me oneram mentalmente. O paradoxo aqui é que quanto melhor eu me sinto, mais eu me preocupo em voltar a ficar mal, em perder os pequenos benefícios que venho amealhando nas últimas semanas com ferro, Donaren e Citoneurin no músculo. Ainda sobra uma brecha para destrinchar outras coisas. A pessoa que fica revoltada com meus almoços, poderá vibrar em saber que minha glicemia está crítica. No limite!
Mas há ainda o resto da vida que não passa nem por saúde nem por prazeres, que é aquele espaço onde se opera o real inevitável. Como muitos de vocês sabem, o sumiço de uns arquivos nas últimas 48 horas me revirou a vida e tive de fazer uma operação de reanimação para me manter à tona e não atropelar um cronograma maior. Na última hora, tudo funcionou. Desde agosto, na verdade, minha cota de infortúnios de monta está bem fornida. Exemplo: apareceu uma rachadura na parede de um pequeno imóvel que demandou a saída do meu inquilino e uma reforma que levará meses. Um baita prejuízo!
Outra notícia boa para a revoltada com o espaguete: como tenho deficiência de ferro, gosto de chupar gelo. Engraçado, não é? Chupando gelo, quebrei um dente. E deste dente, quebrou-se a raiz. O que era bem simples [consertar um dente partido] virou uma engenharia intrusiva. Bem do jeito que eu gosto... Tem mais. O médico me ligou. Disse que eu não posso me acomodar com os progressos que tenho feito. Que há um novo patamar de desafios a ser superado, para não correr riscos e ter melhoras efetivas. Em suma, a vida de um sexagenário desencanado está comprometida. Tudo conspira para ter de viver sob alerta máximo.
Domingo fui almoçar no Rufino's com um casal de amigos. Comemos um peixe ao forno espetacular. Nem assim, deixamos de falar da Terra em transe que é nossa vida. Nossos cantores favoritos estão morrendo. Os políticos que foram importantes na nossa geração, idem. Que sentido tem fazer planos mirabolantes para o futuro? O que é a vida senão aproveitar o que se tem hoje, aqui e agora e contar com alguma sorte? E perceptível que a hora vai chegar em que dinheiro algum vai servir. Entrevado numa cadeira, ao lado de um cuidador, só vai restar ouvir os sinos da igreja e esperar o almoço.
A vida pode ser demolidora. Não dá para dormir totalmente em paz. Sou bastante grato aos anos de impunidade absoluta de que desfrutei em que não conheci quaisquer limitações. Mas um ingrediente tem de estar presente mesmo no azedume que perpassa a vida dos meus coetâneos: a gentileza. A abrasividade do trato diário com robôs ao telefone, com empreiteiros que vão derrubar uma parede danificada, com médicos que nos olham com um misto de apreensão e cautela, em tudo isso só não se pode prescindir de um pouco de civilidade, de um tom mais brando. Se consola saber, a guerra já está perdida.
Já o dia a dia é uma sucessão de batalhas aritméticas e psicológicas. Convém tentar ganhá-las. E pensar que a mulher ainda se indignou com um prato de espaguete de R$ 70. Diante de tanto cataclisma, como se pode atentar para uma filigrana desse calibre? Seja como for, e se for assim, a verdade é que não se inventou um jeito mais modesto de ser esnobe. Só a raiz do dente custará 100 pratos de espaguete, ou seja, R$ 7 mil. Só a parede, serão 1 mil pratos de espaguete, em resumo, R$ 70 mil. Espero que isso a deixe realizada! Francamente... Acho que hoje mereço uma feijoada. Mas é melhor não colocar nenhuma foto aqui.
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