O amor supremo
Pelo tempo que durou o voo, mal consegui desgrudar os olhos de uma dupla de pai e filho sentada a dois metros de mim, do outro lado do corredor. Falemos do pai em primeiro lugar. Imagino que de pé, deveria medir 1,85. Tinha uma calva acentuada, mas também cabelos arruivados entre o cocuruto e a nuca, suficientes para vermos que quase não os tinha brancos, o que me levou a crer que tivesse uns 55 anos. Nariz adunco, olhos castanhos e vivos, tratava-se de um homem irremediavelmente doente. O pescoço não tinha mais movimento próprio. Se o queixo recaía e se apoiava no tórax, alguém precisava levantá-lo para recostar a cabeça na poltrona. Os raros movimentos labiais emitiam um som baixinho que, para ser interpretado, só mesmo por quem fosse muito treinado pelo convívio para lhe entender as intenções. Os braços permaneciam colados ao corpo e não havia a mínima possibilidade de se mexerem. As mãos eram mortas, estacionadas em permanência sobre as coxas. E, no entanto, os pés balançavam de leve e os joelhos também podiam se tocar. Como prova de que a cognição era boa, apesar daquelas imensas limitações, assistiu a um vídeo na tela do computador, com a ajuda dos fones que lhe acoplaram aos ouvidos. A toda hora escorria saliva dos cantos da boca e mal se passavam dois minutos sem que alguém lhe limpasse essa secreção continuada. Vestido de calça caqui e camisa branca de manga comprida, muito bem passada, foi fácil imaginar este homem até há algum tempo levando vida absolutamente normal e atuando nas diversas frentes da vida, como faz a maioria de nós. O que acontecera?
Falemos agora deste alguém providencial. Era visível que se tratava do filho. Que idade teria aquele rapaz? Trinta, talvez. Com ares de intelectual, dentes levemente proeminentes – como os do pai –, olhar bondoso e comprometido, a todo instante ele se voltava para aquele homem que dava mil vezes mais trabalho do que um bebê. Talvez eu nunca tenha visto tanto afeto e tanta cumplicidade quanto aquela que os unia ali, entre dezenas de passageiros loquazes de um avião de carreira. Apesar do infortúnio do quadro, sou capaz de jurar que percebi um par de vezes um sorriso triste nos lábios do pai, ocasião em que os olhos brilharam além do normal. Via-se claramente, ademais, que aquela dupla extraordinária conheceu um antes e um depois. Sou capaz de jurar que o antes foi bastante feliz. E que desde a fatalidade do depois, que não saberia precisar em quanto tempo se instalou nem em que circunstâncias a doença lhe bateu à porta, a vida do filho deve ter passado por uma mudança drástica. Da normalidade a uma entrega absoluta àquilo que elegeu como causa e missão. Pois vendo o desenrolar das pequenas coreografias que executava, a gesticulação por vezes divertida que fazia para ilustrar uma situação com o fito único de diverti-lo, o abraço afetuoso que deu naquele homem ainda belo, é visível que não sobra espaço na vida do jovem para cuidar de seus próprios filhos – se é que o os teve –, da carreira ou do futuro. O foco irrestrito é o pai no tempo presente, e todos os cuidados de quem tem por obstinação única compensar com o amor que houver na Terra a desdita que o atingiu de forma tão ingrata.
Por um breve momento, nossos olhares se cruzaram. Esbocei um sorriso discreto, daqueles sorrisos americanos em que se franzem os lábios, mas em que os dentes não aparecem, tentando transmitir simpatia, solidariedade, enfim, uma mensagem de força. Se ele pensou em reciprocar, logo esqueceu. Na pele macerada do pai, colada aos ossos do rosto como se lhe tivessem aplicado uma fina máscara de argila para tirar um molde, perpassou um tom avermelhado, sinal para ele de um engasgo iminente. Então, pela centésima vez, pegou um lenço de papel, cochichou alguma coisa para o pai e este abriu a boca, deixando escorrer mais saliva. Meu Deus, que ventura a deste homem de poder contar com alguém de quem pelo jeito sempre foi tão próximo para lhe mitigar o emparedamento desumano. Que vida tinham antes? O que será que o pai diria, se pudesse expressar alguma coisa que não fosse pelo movimento dos olhos, sobre tanta doação? Será que se sente culpado por estar destituindo o filho de qualquer possibilidade de viver a própria vida? Fiz uma especulação após a outra. Será que foi a doença que os aproximou? Quem garantia que não tivessem uma relação fria antes do sucedido? Eu e o eterno monólogo dos viajantes. Na verdade, poderia até tocar-lhe o braço num momento de trégua e perguntar o que tinha acontecido. Aquilo me parecia esclerose lateral amiotrófica (ELA), mas poderia ter sido outra coisa. Um derrame absurdo? Uma grave intercorrência neurológica ou uma certa distrofia de que tanto falam? Certamente a morte teria sido mais libertadora, mas me sinto mal de pensar assim. É como se a cena não estivesse me ensinando nada.
Enfim, saber o que fora não me levaria muito longe. Que ficasse com minhas especulações e com a lição reiterada de que não há força humana maior do que a do amor. O que mais eu pudesse dizer ao rapaz, ele já deve ouvir de muita gente todo dia. E a todos deve dizer a mesma coisa. Que estará ali pelo tempo que for e, a depender dele, nenhuma felicidade se compara àquela que sente quando arranca uma intenção de sorriso do pai. Quando as portas do avião se abriram, vi que eu mal tinha tocado nos jornais que levara comigo. Um dia depois, ainda não consigo esquecer o episódio, se é que conseguirei um dia.
Veja mais notícias sobre Comportamento.
Comentários: