O amor como doença
"Uma escala em Paris" ("Thirst Street", no original em inglês) é um filme despretensioso, quase bobo, e pouco teria para prender nossos olhos na tela. E, no entanto, a obsessão da aeromoça americana Gina (Lindsay Burdge) pelo garçom francês Jérôme (Damien Bonnard) faz dele uma comédia dramática bastante razoável, se você presta atenção ao absurdo de certas paixões e o quanto elas podem transtornar a vida dos protagonistas.
Senão, vejamos. Gina era viúva e as colegas de farda resolveram contratar uma cartomante em Paris que lhe fala de um homem especial que logo aparecerá no seu caminho. Este calha de ser um sujeito rústico que serve bebidas num cabaré e nos intervalos cheira bem fornidas carreiras de cocaína. Como faz com várias mulheres, Gina é só mais uma que Jérôme levou para a cama, e mal se lembra de quem é ela no dia seguinte à fatídica transa.
Tomada por uma necessidade irascível de amar, mais até do que de se sentir importante para alguém, a tresloucada mulher resolve que eles estão vivendo um romance e tem o desplante de alugar um apartamento diante do dele, sem que o amado saiba. Anulando-se por completo, abre mão da carreira e resolve enturmar-se no submundo onde ele vive, abdicando da vida anterior por completo, e fabulando maravilhas para as amigas sobre o tosco Jérôme.
Certo é que quem for ao cinema, saberá como essa história continua e acaba. O que me ocorre hoje é divagar sobre situações de toxicidade parecida com a retratada, só que fora da tela grande. Imagino que a maioria dos homens e das mulheres já foi alvo de uma veneração unilateral e fantasiosa, sem que nada tivessem feito de concreto para que se tornassem tão íntimos no imaginário alheio, não raro a um ponto apavorante.
Tenho um amigo que foi premiado por metros e metros de poemas por fax em plena segunda-feira, depois de uma noite de sexo com uma mulher que mal conhecera no domingo. Na cabeça desta, o par de horas que tinham passado juntos em casa dele fora o bastante para que algo de sublime tomasse forma. Não tardou para que ele tivesse que trocar o celular e instruir todo mundo do escritório e da residência que a presença dela era proibida.
Admitindo que os amores possam estar raros e que nem todo mundo se dispõe a aceitar regras alternativas de convívio, é grave imaginar que pessoas como Gina vaguem por aí sem qualquer ajuda médica, e fabulem soluções para o jogo de perguntas e respostas que elas entretêm sozinhas. Quem for ao cinema, de qualquer forma, encontrará uma indicação sugestiva de como detectar em si mesmo o diabólico composto da infernal alquimia do autoengano.
No final, saí pela Avenida Paulista com os versos de Cazuza: "O nosso amor a gente inventa, pra se distrair...". Feliz dele quando não ultrapassa unilateralmente esse estágio. A dois, porém, o céu é o limite. E que assim permaneça.
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