Deseducação financeira

Foi o taxista Inácio, um paraibano bom de prosa, quem me contou a história daquele seu conterrâneo, o homem sorridente que vendia pipoca à porta da igrejinha nos fins de semana. De tez acobreada, calvo, bigode discreto e sempre pronto para sorrir, já...
Deseducação financeira

Foi o taxista Inácio, um paraibano bom de prosa, quem me contou a história daquele seu conterrâneo, o homem sorridente que vendia pipoca à porta da igrejinha nos fins de semana. De tez acobreada, calvo, bigode discreto e sempre pronto para sorrir, já não lembro o nome dele: "Quem o vê assim, não acredita que esse homem já teve muito dinheiro, não é? Mas posso garantir que teve mais do que o suficiente para viver como rico até o fim dos dias e para deixar um belo patrimônio para os filhos. Mas, infelizmente, as coisas deram errado e, afinal, ele perdeu tudo. O que ninguém entende é que ele hoje parece mais feliz do que era nos tempos em que nadava na grana". Curioso com aquela narrativa inusitada, pedi-lhe que me contasse com detalhe o que acontecera, já que estávamos a caminho do aeroporto e tínhamos tempo. De mais, em tempos de sujeição ao telefone celular, nada como uma boa conversa para a desintoxicação digital.  

"Foi assim. Ele trabalhava como vigia noturno num prédio do bairro, no limite da Vila Madalena com o Alto de Pinheiros. Como todos nós, sempre fazia um fezinha e deixava uns trocados na lotérica para ter um horizonte. Até que chegou o grande dia. Jogou na Mega-Sena e embora tenha dividido o prêmio com mais três felizardos, foi uma bolada considerável. Quando conferiu o bilhete, já telefonou para dois paraibanos de quem era amigo, ambos desempregados, e lhes disse que seus problemas tinham acabado porque ele se tornara um homem rico. Foi com eles que compareceu à Caixa Econômica e de lá mesmo foram comer uma favada com carne seca lá no Canindé. Ninguém no restaurante botou a mão no bolso, ele pagou tudo e ainda deu R$ 100 para cada um dos presentes. Dali comprou uma caminhonete cabine dupla de um conhecido e foi para casa. Deu a boa-nova para a mulher, quitou o financiamento da casa e disse que agora iria viver a vida". 

"A esposa ainda tentou chamá-lo à razão. Por que não ser mais discreto e fazer um planejamento sobre como gastar o dinheiro? Mas ele não quis conversa. Cavalheiro e cheio de gratidão a ela, levou-a ao banco no dia seguinte e transferiu R$ 1 milhão para o nome dela. Isso feito, viajou de carro com os dois parceiros para a Paraíba. Ainda em Minas,  fecharam o cabaré de Governador Valadares e passaram dois dias com as mulheres a se embriagar, ouvir música e namorar. Na Bahia, a Polícia Rodoviária pediu para ver os documentos do carro e constatou que era um veículo roubado e que precisava ser apreendido. Que não fosse por isso. Foi a uma revenda em Vitória da Conquista e comprou um carro zero, à altura do que se julgava merecedor. Quando chegaram a Campina Grande, a família já o esperava como um rei. Parentes de quem sequer se lembrava, perfilavam-se para lhe beijar a mão e pedir a benção. Até o ex-patrão do pai estava lá para homenageá-lo".

"Conversa vai, conversa vem, o velho fazendeiro fez com que ele se sentisse numa prosa entre iguais. Falando do finado genitor do novo milionário, chegou a chorar pelo homem correto que foi. Sabia que ele e seu pai eram compadres? Sim, batizara um irmão seu, hoje de paradeiro ignorado. Não precisou de muita conversa para convencê-lo de que precisava comprar uma fazenda ali mesmo. Ele próprio faria gosto em lhe vender uma. Empolgado com a perspectiva de plantar milho e criar gado, ele não hesitou. Dias depois, foram ao cartório tratar da escritura. Mas, acredite se quiser, a papelada também estava irregular e a fazenda logo se tornou área de ocupação. Ali mesmo se engraçou de uma prima, e já lhe deu um anel num fim de semana de lua de mel em João Pessoa. A mulher oficial, que ficou em São Paulo, acompanhava de longe essas presepadas sem nada poder fazer. Afinal, ele era um homem bom, embora deslumbrado. Na surdina, os amigos torravam seu dinheiro". 

Já estávamos vendo as luzes do aeroporto quando apressei Inácio a terminar a conversa. Eu já rira como nunca daquelas peripécias amalucadas. "Em dois anos, seu Fernando, o homem não tinha mais nada. Pelo contrário, estava devendo um bocado e tinha uns processos nas costas, já que fora fiador de meio mundo em empréstimos bancários que nunca foram honrados. Cabisbaixo, acredite, foi pedir emprego no velho prédio onde trabalhara. Os moradores o acolheram com tristeza, mas foram solidários. Na garagem, ele guardava seu carrinho de pipoca com que passou a complementar a renda. As mulheres que foi cultivando na fase de prosperidade, sumiram. Em que porta ele foi bater? Na casa da esposa que tinha ficado com os filhos e que guardara bem o dinheiro recebido. Com a família reconstituída, voltou a sorrir. E quando evocava os tempos de milionário, provocado por algum curioso, cortava o ar com a mão e dizia: Deus me livre, nunca mais".

Quem quiser que subestime a complexidade da alma humana. Sempre que passo por aquela praça, anos depois do relato do taxista, penso nesse episódio tão ilustrativo sobre os labirintos da mente. No fundo, o porteiro-pipoqueiro queria se ver livre do dinheiro desde a primeira hora. Ao invés de representar libertação, a fortuna foi um fardo que por pouco não degenerou em pesadelo.

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Sexta, 03 Mai 2024

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