A vida dos outros
A duas horas de Frankfurt, estou a meio caminho entre esta cidade e Berlim, de cuja estação central saí pontualmente às 15:07 desta segunda, 28 de janeiro de 2019. Ocupando a poltrona 41 do vagão 23, não percebi em que momento uma imponente mulher negra embarcou na plataforma 13 para vir ocupar a poltrona 38, o que equivale à janela oposta à minha, uma fila adiante no sentido da marcha. Nem bem o trem se pôs em marcha, fui até o vagão restaurante onde me servi de um chá de frutas vermelhas. De volta a meu assento, onde pretendia trabalhar, eis que a jovem em questão já estava embalada numa conversa das mais animadas ao telefone.
Falando em inglês, o que me levou a pensar que ela talvez ignorasse as regras de convívio nestes espaços que, formal ou informalmente, recomendam um mínimo de respeito ao silêncio e ao espaço alheio, eis que debulhava um farto rosário de mágoas com quem a princípio me pareceu ser uma amiga. Dadas, contudo, as evocações recorrentes ao direito de ser feliz e à necessidade de se fazer respeitar, comecei a pensar se tratar de um(a) terapeuta. Em qualquer hipótese, o tom estava em total desacordo com o ambiente. Entre Spandau e Braunshweig, aconteceu o inevitável. Uma jovem senhora de sotaque indefinido, mas de indizível beleza, advertiu-a que estava falando alto.
A reação não se fez esperar. Indignada, a jovem desembrulhou sua indignação e, em tom mais exacerbado do que o anterior, apontou as janelas dizendo que não havia ali nenhuma indicação de que se tratava de um "Ruhewagen", denominação dada aos compartimentos onde as conversas ao celular são proibidas, o que obriga as pessoas a ir até a intersecção dos vagões para falar. Indignada, ainda bradou: "Os incomodados que se retirem, isso aqui não é um escritório". Seja como for, talvez também advertida pela pessoa que tinha de aturar do outro lado seus queixumes, o tom baixou à metade, o que ainda deixava a voz audível para 20 passageiros.
Foi só com a chegada do controlador de passagens que vi que ela se exprimia razoavelmente bem em alemão. O que, no meu entender, remetia o problema a outra dimensão. E esta não é da "falta de educação", como se costuma dizer no Brasil. O que se passava ali era simplesmente uma incompatibilidade cultural enraizada envolvendo de um lado ela, e de outro o ambiente. Ora, a matriz cultural da moça, talvez a exemplo da minha, é africana, meridional, latina, por assim dizer. Isso faz dela uma pessoa de características multiativas. Conversar ao telefone para ela é uma forma legítima de matar o tempo. E não lhe ocorre que seus temas pessoais devam ser tratados como tal.
O controlador lhe deu a entender que embora não fosse um "Ruhewagen" na acepção oficial, recomendava-se não extrapolar do essencial, no que foi secundado pelo passageiro da cadeira 26 que de uma mesinha voltada para nossa direção, também se confessou incomodado pelas confidências bradadas. Ora, sendo a maioria do vagão composta por gente ativo-linear, a quebra do sequenciamento daquilo que estão empenhadas em fazer por conta da irrupção de um fator externo perfeitamente evitável, é explicavelmente irritante, A essa altura, Göttingen já ficou para trás. E nossa amiga sussurra ao telefone, o que seria impensável em Kinshasa, Abidjan ou Dakar.
No maravilhoso livro "Ébano", do polonês Ryszard Kapuscinski, onde ele nos conta sua longa vivência na África, há uma história que se passa num trem no interior do Senegal. A certa altura, numa escala onde as janelas das cabines ficavam juncadas de ambulantes vendendo cachos de banana e refresco de frutas, entrou uma senhora corpulenta, chamada Madame Diouf. Coisa de sua importância, não fazia caso da presença dos demais passageiros. Ou melhor, via-os como plateia a quem interessaria saber de seus netos, de suas compras, de sua dor nas costas, do diabetes do marido e assim por diante. Pois bem, hoje tive meu dia de Kapuscinski e conheci uma Madame Diouf.
Conformada com o fato de que sua vida não interessa tanto assim aos demais, ei-la agora tranquila. O choque de civilizações acontece mais nessas dimensões pedestres do que nos conflitos armados que conflagram o mundo. Chega por hoje. É hora de ir até o vagão-restaurante e tomar mais um chá. Não duvido pessoalmente de que ela seja muito boa gente. Mas tenho certeza de que a maioria dos passageiros não tem a mesma opinião. Nessas horas, o "melting pot" brasileiro nos vacina contra os pequenos aborrecimentos que provocam tais entreveros. Hoje passo minha última noite aqui na Europa. Amanhã à mesma hora, já estarei voando.
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