A dança dos amigos

Essas são glórias e mazelas de tempos terríveis
E assim a vida e os valores se reciclam à custa de milhões de mortes e de uma ameaça permanente, que não dá trégua

De Paris (França)

Não estou dizendo que quem era amigo vá deixar de ser. Mas depois de quase um ano de pandemia – pelo menos para quem está aqui na Europa –, há uma rearrumação de cenário em curso. Bons amigos de ontem vão sumindo no espelho retrovisor. Seja porque as conversas não se reciclaram, seja porque bateu uma sensação de estranheza, seja porque os valores individuais se distanciaram muito diante da adversidade, seja simplesmente porque outras pessoas se tornaram mais importantes na vida de cada um. Muitas vezes a gente se pergunta: mas o que era mesmo o que nos unia? Aí vemos que era comparativamente pouco, que só éramos parceiros de euforia, de negócios, de episódios pontuais que realçaram um laço efêmero. E que essas quadras não foram fortes o bastante para cimentar alianças que atravessassem o tempo. Ninguém tem culpa. Seu amigo pode (e deve) estar com a mesma sensação com relação a você.

O contrário também é verdadeiro. Pessoas que mal conhecíamos, com quem trocávamos acenos à distância e cuja aproximação tínhamos até evitado, eis que elas se revelaram vitais, quase imprescindíveis nesses tempos bicudos. Tão importantes que uma das razões que nos fazem querer chegar ao outro lado do rio é justamente para lhes agradecer, para estar com elas, para mostrar algum tipo de gratidão. Ora é um amigo médico que toma a iniciativa de ligar para saber o nível de saturação de oxigênio, para se informar se o novo remédio contra a asma trouxe alguma perturbação, ou para perguntar, carinhosamente, se você está zelando pelo copo de vinho tinto que lhe prometeu tomar todo dia. Ou então é aquela pessoa fidalga que se oferece a fazer o que a distância o impossibilita. Até a mandar flores para um enterro, sabendo-o impossibilitado, ou a guardar as revistas "Piauí" que você colecionava, mas agora já não pode comprar.

E, é claro, tem gente que não é ex-amigo, amigo antigo, ex-quase amigo ou sequer conhecido, mas cujos passos você passou a acompanhar a ponto de se sentir muito próximo dela. Na televisão, por exemplo, tenho um casal de apresentadores que vejo praticamente todo dia no Canal 2. Acho que se encontrar com Anne Sophie num café do Palais-Royal vou querer trocar confidências como se soubéssemos tudo da vida um do outro. Tem um médico simpático que fala sobre a pandemia, internação e vacinas a quem eu me confiaria para as confidências mais íntimas e estaria pronto a atravessar qualquer temporal para ir pegar uma pizza para ele, se esse fosse seu desejo. E é claro, as pessoas das redes sociais cujos comentários criam uma sensação de proximidade que dá vontade de conhecer quem está por trás da foto. Enfim, há uma dança de cadeiras nas próprias famílias – primos mais próximos e mais distantes, filhos, enteados, genros e netos.

Essas são glórias e mazelas de tempos terríveis. Os que nos ajudaram a vivê-los com mais leveza ficaram em nossos corações como hospedeiros que ofereceram refúgio quando tentávamos nos evadir do inimigo. E assim a vida e os valores se reciclam à custa de milhões de mortes e de uma ameaça permanente, que não dá trégua.

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Sábado, 14 Dezembro 2024

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