"A Baleia", uma forma de viver o fim
Morrer encapsulado numa espessa camisa de gordura é especialmente aflitivo. Um sujeito gordo é passivo de ser fulminado por riscos múltiplos, logo não há um protocolo único de ataque ao problema. A perplexidade é legível na expressão atoleimada dos médicos que, antes de tudo, não querem perder uma chance de fazer nele alguns experimentos e de lavrar precedentes que lhes valham reputação na mídia e nos laboratórios. Terminais lúcidos são cobaias primorosas para a glória científica dos alpinistas do jaleco branco. Afinal, a morte já está precificada. O gordo vive também cercado de confidentes mais brandos que lhe segredam o elixir da cura: "Fecha a boca e arranja uma namorada, vai por mim." Enquanto o corpo se carameliza e os herdeiros fazem conta, temerosos de que o predefunto torre em pizza o patrimônio, os visitantes ocasionais comentam entre si que a obesidade de fulano é, antes de tudo, um ato de irresponsabilidade extrema, de falta de vergonha frontal, de indisciplina medular, de extravagância elevada a paroxismo. Onde quer que esteja, o gordo sabe que seu peso será o assunto dominante. É o quebra-gelo, é como a meteorologia para os britânicos.
Quando o gordo chega aos níveis de morbidade do personagem de Brendan Fraser, o corpo vira uma espécie de ecossistema insalubre, um asteroide pesado e contaminante. Micoses, sangramentos, assaduras e dificuldades de higienização tornam a pessoa uma espécie de cloaca a céu aberto. Repulsivo e apequenado, tudo o que lhe importa é se empanturrar de comida, o único agente de prazer que lhe dá satisfação imediata e não o censura por performance. Pelo contrário. A reação das pessoas que se aproximam feito chacais – filhos bissextos, pregadores da salvação, oportunistas de toda ordem e vendedores de facilidades operacionais – é toda ela pedagiada. Agem como se cobrassem do gordo – e cobram – uma taxa de periculosidade por se aproximar dele e lhe dar ouvidos. Na visão do condenado – porque é isso o que ele é –, só lhe cabe agradecer a quem reconhece nele um laivo de humanidade. O gordo parece ter um prazer especial em falar de sua vida passada, especialmente dos tempos em que amou e foi amado. Nos momentos em que o convívio se desdramatiza e o diálogo ganha uma camada tênue de proximidade, o visitante não resiste e pergunta: diga uma coisa, cá entre nós, como você deixou isso acontecer?
O gordo se sente permanentemente como um zagueiro que fez um gol contra num jogo decisivo, como uma espécie de auto monstro que resolveu lacerar uma vida de venturas em nome de um capricho hedonista. No filme, o protagonista é professor e dá aulas online de redação. Essa dimensão certamente está na raiz de um mal crônico que o isola mais ainda do mundo real. Ele vive trancafiado numa sala sombria, a essa altura mal sabe que existe o sol. Primeiro, há a reclusão por comodismo; depois por vergonha, até que sobrevenha a incapacidade de se locomover sem andador e sem causar uma constrangedora comoção à volta. O gordo não sente vergonha, mas ele se apieda da vergonha que o outro sente ao ser percebido em choque. A certa altura, ele já não sai de casa e as rubricas de comida e interconectividade são as que mais contam no orçamento familiar. Familiar é dizer um pouco demais! No caso do filme, ele dispensa cuidados médicos porque os sabe vãos. Melhor do que protelar um pouco o fim é deixar dinheiro para a filha chantagista, que se confunde com o único legado válido que ele deixará no mundo, ele que se sente tão pouco virtuoso por "ter se matado" – entre outros.
A única forma de suicídio que não atrai a menor simpatia e condescendência é aquela provocada pela obesidade. Até alcoólatras são vistos com indulgência. Foi o fígado que o traiu, chamando uma cirrose. Até quem se joga de um prédio e atrapalha o tráfego merece uma vela de um passante. Mas o obeso é condenado pelo conjunto da obra. Pelo sedentarismo, pela sobrealimentação, pelo ônus ao SUS e até pelos que mais dizem amá-lo. Afinal, ele não estancou o processo de fim iminente para ficar um pouco mais entre os vivos. Logo, que espécie de amor é esse que sacrifica tudo e todos ao apetite da madrugada? No filme como na vida, o terminal tem claro o que pretende legar ao mundo. Ao invés de gastar energias pensando em como evitar calorias, aplica a força crepuscular no que ele crê ser transcendente: o amor, a criação, o compartilhamento de experiências, o sublime. Aquilo de que talvez os gordos menos possam falar é sobre o que mais espicaça a curiosidade alheia: como isso foi acontecer? Nessas horas, eles se perdem em vaguezas e nebulosas. Na verdade, só se descobriram gordos quando já era tarde para reverter o quadro. Antes disso, curtiam uma autoimagem atraente que só eles enxergavam. É a inversão da anorexia da jovem modelo. Mas igual.
Quanto ao gatilho que desencadeou o quadro, o gordo tem apenas uma lembrança fugidia de uma quadra de vida em que, inadvertidamente, ele achou que acionar o f*** era mais fácil do que pensar a respeito dos danos de uma feijoada de madrugada. Talvez estivesse apaixonado. Talvez desiludido. Talvez falido. Talvez pessimista. Talvez desmotivado. Talvez isso tudo. Gostei do filme. Como gordo, pela primeira vez saí do cinema sem vontade de comer. Só uma hora depois o apetite se reestabeleceu. Gostei especialmente do desempenho dos poucos atores que fazem a amiga, a filha, a ex-mulher e o rapazinho que veio pregar. Assim é o mundo do gordo: pouca gente gravita à volta dele e quem o faz cobra pedágio e o ameaça. O "vou embora" é uma constante. O gordo sabe lidar bem com o fato, sabe ser manhoso. Nem sempre ele foi gordo, é o que mais alerta. Mas isso deve se aplicar a todo mundo que está doente. Obesos mórbidos são mesmo pessoas doentes, ao que tudo indica. E não necessariamente hedonistas empedernidos, arruaceiros de baldes de pipoca doce, ainda que esses hábitos sejam sintomáticos da hecatombe anunciada. Sempre haverá um ponto de ruptura. Parece que o esforço síntese do personagem é dizer que nada fora do amor importa. Nem o cozido da casa da mãe. E nisso, convenhamos, ele tem razão.
Não se pode esquecer, contudo, que assim como os bobos tinham uma função na corte, espantando o espectro do tédio do soberano e fazendo-o rir, o gordo também tem uma missão social. Os amigos que o cultivam se sentem bem ao seu lado. Nem tanto pelas piadas que podem fazer, que terão como pedra angular palavras chave como apetite, gula, sede, Pantagruel, Jô Soares ou Wilza Carla; mas sim porque o gordo faz com que mesmo os idiotas mais empedernidos se congratulem consigo mesmo por não serem como ele. Afetando naturalidade, falarão do personal trainer, da dieta balanceada e dos exercícios físicos bem orientados. Para eles, é tudo muito simples. Dão a dica e o gordo que corra (sic) atrás e tome prumo. Com seu metabolismo perfeito, os magros recomendam baciadas de chuchu com a mesma ligeireza com que um milionário recomenda a um pobretão que tire férias na Côte d ́Azur com a família porque, afinal, é para isso que o dinheiro serve. Em contato com os gordos, os idiotas se sentem bem; abaixam-se para pegar o guardanapo que ele deixou no chão e lhe empurrarão um prato com metade das almôndegas intactas. "Eu não toquei, são suas. Divirta-se". No fundo, pensam: já fiz meu ato de solidariedade. Ele já sabe que vai morrer mesmo, que diferença faz que seja um pouco mais cedo? No final, dirão ao gordo o quanto admiram sua educação e inteligência. Ele, bem na sua, só pensa nas almôndegas. Não há elogio para o gordo que não possa ser transformado em comida. É sua moeda forte.
Eis um filme de poucos risos, é claro. Quando eles acontecem, o gordo da tela se engasga e precisa ser reanimado e advertido. Na plateia, só os gordos riem com a história dele, imagino. É um dos poucos direitos que eles ainda têm, eles que, no dizer geral, pagam por um e viajam por dois. Quando ainda viajam... Quem morre de câncer, merece no obituário um elogio ao espírito de combate: "Faleceu depois de uma longa luta contra uma doença insidiosa". Quem morre fulminado por um ataque cardíaco ou por um AVC, foi vítima de uma traição do destino no melhor momento da vida. Até a falência de órgãos múltiplos, tão em voga, passa uma noção de luta sem trégua, de apagão progressivo do sistema e não se questiona a tenacidade do morto. "Ela foi uma heroína", dizem os médicos à guisa de consolo. Morrer de acidente aéreo transforma qualquer um em nome de praça. O assassinado também pode, com algum empenho dos parentes, ser elevado a mártir. O obeso morre sem glórias, a morte dele é só a continuação de um estado que já era dado há muito tempo como incontornável, como filho torto da preguiça e da inação. Recomendo o filme.
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Comentários: 1
Muito interessante seu comentário, diria até cruel, mas perspicaz. Entretanto acho que o filme vai além da morbidez da gordura. Há todo um tratado psicanalítico que envolve todos os personagens, porém considerei mensagem final é que tudo gira em torno do amor. Os preconceitos são colocados com muita delicadeza em segundo plano, a ponto de o próprio título não se relacionar com o professor, mas com a redação da filha.
De qualquer forma muito bonita a sua análise, diria até poética.